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Antropologia em tempos de pandemia

Nas últimas décadas, a antropologia tem mantido uma relação de proximidade com as problemáticas da epidemiologia e a saúde pública. No contexto das políticas internacionais de saúde, os antropólogos procuram integrar ações desenvolvidas junto das comunidades, realçando a importância de considerar as perceções de saúde e doença destas na definição de prioridades, no planeamento e na aplicação de programas.

As epidemias não são redutíveis a estatísticas, sendo necessário não apenas entender os mecanismos do agente infecioso e procurar soluções de cura e prevenção, mas também compreender as relações sociais, históricas, económicas e políticas que enquadram ou condicionam escolhas e comportamentos individuais. Os antropólogos têm um papel fundamental no desenvolvimento de respostas úteis e contextualizadas no combate às epidemias. Como agentes sociais qualificados e possíveis mediadores entre o poder e a sociedade civil, cabe-lhes interpretar e compreender as formas de pensar as problemáticas epidemiológicas de base amplamente social.

Os métodos qualitativos usados pela antropologia dão rosto, trajetória e biografia aos números das estatísticas. As suas ferramentas conceptuais evidenciam a complexidade e multiplicidade de significados atribuídos aos fenómenos de saúde e doença pelos atores envolvidos na dialética epidemiológica. A COVID-19 é hoje uma doença global, mas não um fenómeno vivido da mesma forma em todos os lugares geográficos e por todas as pessoas. A antropologia e as ciências sociais são indispensáveis para pensar de forma contextualizada os seus efeitos nas populações.

A pandemia trouxe uma disrupção generalizada na vida social e na prática habitual da antropologia. A metodologia tradicionalmente utilizada em investigações antropológicas, que visam um contacto direto com os sujeitos e comunidades em que se introduzem (etnografia, observação participante, histórias de vida, entrevistas), foram sujeitas a alterações substanciais de forma a ultrapassar barreiras espaciais impostas pelas medidas de restrição da COVID-19. No entanto, este não é o primeiro cenário epidémico mundial e, no passado, mesmo sem internet ou estatísticas ao minuto, a antropologia manifestou uma enorme capacidade de adaptação e reinvenção dos seus métodos de pesquisa em cenários atípicos.

Um exemplo de ajustamento é a Ebola Response Anthropology Platform. Esta plataforma digital trabalha proactivamente com organizações humanitárias e de saúde na projeção de intervenções e pesquisas localizadas mais responsivas e socialmente informadas. Através da experiência antropológica existente, a plataforma fornece informações claras, práticas e em tempo real relacionadas com as dimensões socioculturais cruciais no combate a um surto epidémico.

Esta iniciativa possibilita o contacto rápido via qualquer meio de comunicação digital entre cientistas sociais e equipas de controlo, ONGs, governos e agências internacionais facilitando a sua interação no desenvolvimento de intervenções coordenadas e apropriadas para dar resposta a surtos de ébola em África. Procurando contribuir na construção de políticas de saúde global mais amplas, a plataforma pretende também avançar com uma perspetiva comparativa entre o ébola e o seu combate e outras infeções emergentes.

Os meios de comunicação digital possibilitam vencer a distância, criar novos modos de fazer pesquisa e novas oportunidades de comunicação com lugares improváveis e que de outra forma não seriam acessíveis sem viajar para o local. Estes meios não são novos, mas hoje a participação em encontros e conferências online nos antípodas é banal e manifesta condições para ser continuada num futuro pós-pandémico (mas não em exclusividade). O mundo contemporâneo é, em larga mediada, digital. Não obstante, é também imperativo ter em mente que, a dependência da tecnologia pode ser problemática e segregadora tendo em conta as diferenças económicas e geográficas que podem dificultar o acesso a recursos eletrónicos.

Os antropólogos da nova realidade, já ultrapassaram a distância física. Assim, devem manter-se críticos e participativos na comunidade ou comunidades em que se inserem, reinventando meios e métodos de pesquisa e aprendendo a reagir a novas circunstâncias.

A que criarmos agora será a nova tradição. A reinvenção da prática é o novo futuro.

Carlos Cândido –Licenciatura em Antropologia

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Little Bird

He wasn’t alone, but he felt lonely
He wasn’t hated, but it was hard for him to feel loved
He wasn’t static, but it felt like he wasn’t moving

He breathed, but felt himself suffocating
He puffed his feathers, but felt more naked
He wanted to fly further, but could never find wind beneath his wings

There wasn’t any light outside, but the shadows within seemed larger
The world went silent, but it sounded like it was screaming
He kept quiet, but couldn’t hear his heartbeat
Nature grew, but it seemed further away

Could floating be called swimming?
Could looking inward show him the horizon?
Only time could lead him to the end of the river
Only he could decide whether to go with, against, or along the current

His wings might have been clipped, but that was a chance to learn where to roost
His song might have been silenced, but that was a chance to learn how to listen
His colors might have seemed faded, but that was a chance to appreciate all the shades of gray

Hope is trusting time while trying to make the most of it
And whether you believe in it or not, tomorrow always comes
So, what will you do with it little bird?

Miguel Xavier –Licenciatura em Biologia

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Scenery – Ryo Fukui

Ryo Fukui foi um célebre pianista japonês, nascido em Biratori, Hokkaido, Japão, a 1 de junho de 1948. Aos 22 anos, começou a aprender piano sozinho, e decidiu mudar-se para Tóquio pouco tempo depois. Já em Tóquio, conheceu Hidehiko Matsumoto, um saxofonista de renome, o qual acabou por se tornar um dos pilares e uma das maiores inspirações para a carreira musical de Ryo.

Apesar de recorrentemente desmotivado pela sua aparente falta de progresso no instrumento, Ryo Fukui lançou o seu primeiro álbum apenas 6 anos após se ter mudado para Tóquio, em 1976, sendo este intitulado Scenery.

Em simultâneo, do outro lado do Pacífico, com a morte de John Coltrane, o panorama do jazz tinha mudado nos E.U.A., sendo influenciado por novas e refrescantes correntes musicais, como o rock, o funk, entre outros. Estes géneros musicais condensaram-se naquilo que iria ficar conhecido como, Jazz Fusion, ou simplesmente, Fusion. Este novo subgénero musical trouxe uma lufada de ar fresco a um género saturado, tendo até inspirado grandes nomes do jazz, como Miles Davis em Bitches Brew, em 1970, ou Chick Corea em Return to Forever, em 1972.

Assim sendo, é seguro dizer que o jazz franco e emotivo que nos é apresentado em Scenery não podia ter sido lançado em pior altura. Tal como poderiam especular, o álbum não teria uma grande afluência fora do Japão, não sendo disputa para o som irreverente e caótico da época. No entanto, o que tornou este álbum num clássico apreciado mundial tantos anos após o seu lançamento, é a sua entrega total a um jazz frontal e confidente.

Desde o início do álbum, Ryo Fukui deixa claro que Scenery não é nada mais, nem nada menos do que uma jornada. Não tenta grandiosas proezas, ou transcendentes atos que desafiam as confeções da época, Scenery é meramente um homem e o seu piano confidente. E talvez seja isso que atrai tantos para este álbum, o caloroso piano de Ryo, suportado pela bateria de Yoshinori Fukui e pelo baixo de Satoshi Denpo, os 3 vão-se contrabalançando e trocando solos, fazendo com que todo o álbum respire e floresça perante os nossos olhos.

Constituído de 6 músicas, das quais só uma, Scenery, composta por Ryo Fukui, este álbum é uma celebração do jazz no seu estado mais puro, com a sua performance despida de quaisquer instrumentos “desnecessários”, tornando-se visceral, quase hipnótica. E por isto e muito mais, incito-vos a ir ouvir Scenery de Ryo Fukui.

Miguel Mota

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As ciências do ódio – Superior de Angela Saini

O conceito de raça como o conhecemos hoje tem origem na época colonial e pela primeira vez, pessoas com a pele clara encontraram pessoas com a pele negra a viverem em condições distintas, com práticas culturais diferentes. Iniciou-se assim o processo de definição de raça, de pôr em questão se estas pessoas eram ou não humanos, isto é, de desumanizar uma parte da humanidade com base no tom da pele. Após algum tempo, a prática do rapto e transporte transatlântico destes povos diferentes começou, iniciada por Portugal. Eventualmente, a partir daqui chegámos à grande empresa da escravatura, cujas vozes ainda ecoam nos dias de hoje, materializando-se na discriminação racial e estrutural – tipicamente denominada de racismo – com imensas repercussões com as quais Portugal se recusa a lidar, apesar das recomendações feitas por órgãos europeus e pelos próprios portugueses e imigrantes que sofrem as consequências do racismo. Contudo, esta crueldade contínua não foi pura e simplesmente um ato da vontade irracional do Homem em se ver como um ser superior, foi também alvo de várias experiências científicas, rebaixando a ciência a um terreno sujo e lamacento, enrolada nos emaranhos do viés ideológico. Nessa altura, a ciência foi usada para justificar práticas racistas e isso faz parte do legado da história da ciência. Contudo, há espectros que nos assombrarão perpetuamente enquanto houver mentes incapazes de lidar com os legados problemáticos do passado – o racismo é um deles, e as “ciências raciais” acompanham-no.

É sobre esta presença contínua das “ciências raciais” (para que não restem dúvidas as aspas pretendem aqui reforçar o carácter não científico desta “ciência”) que Angela Saini escreve em Superior, um livro que desconstrói toda a mitologia do racialismo – a pseudociência que rabisca justificações (absurdas) para motivar a ideia de que a raça branca é superior. Por outras palavras, “Superior” é um fenomenal epitáfio do racismo científico – só falta que o matem de vez.

Angela Saini é uma mulher britânica de ascendência indiana formada em Engenharia pela Universidade de  Oxford e em Ciência e Segurança pelo King’s College London. Começou a sua carreira enquanto jornalista de investigação independente em 2008 e publicou em 2011 o seu primeiro livro, Geek Nation, sobre as maneiras como a ciência indiana está a ser usada não só no país, mas também no mundo. Em 2017 publica Inferior, que pretende chamar a atenção às práticas pseudocientíficas que perpetuaram durante séculos: a ideia de que os homens são inferiores às mulheres. É um lema semelhante – como a ciência e o discurso que a rodeia foram usados para motivar a discriminação de milhares de milhões de seres humanos – que motiva Superior, considerado um dos melhores de 2019 para a revista científica Nature.

Superior marca-se como um livro que devia ser desnecessário, como um livro que custa a ler não só por nos colocar de frente com o passado complicado da ciência e com o seu presente deturpado por esses legados, mas também por nos obrigar a ver como a ideologia pode levar à aceitação de práticas pseudocientíficas como verdadeira ciência. Afinal de contas, como Saini nos conta, foi a ciência que perpetuou durante décadas a ideia de que raças diferentes eram outras espécies. Foi a ciência que perpetuou as teorias da eugenia que eventualmente levaram ao Shoah (mais comum e erradamente conhecido como Holocausto). Foi a ciência que motivou a esterilização forçada de dezenas de milhares de mulheres de cor nos Estados Unidos da América, uma prática que perdurou até aos anos 80.

Isto aconteceu ao longo de anos e obviamente houve quem contestasse. Houve quem protestasse, houve quem morresse para ir contra esta discriminação supostamente apoiada pela ciência. No entanto a mudança demorou a chegar. Porquê? Saini traz-nos para um dos pontos fulcrais do seu livro – que a ciência é livre de viés ideológico. Números são números, dados são dados, mas aquilo que escolhemos investigar e as questões científicas que escolhemos explorar são determinadas em grande parte por aquilo que nós próprios consideramos importante Não há maneira de isolar essa preferência das nossas emoções e sentimentos relativamente às diferentes áreas da ciência. Contudo, Superior não é um mero ensaio sobre ciência: Angela Saini consulta uma variedade enorme de peritos – fala com pessoas financiadas por um dos “financiadores” modernos das “ciências raciais”, o PioneerFund, que nos seus primórdios suportou a distribuição de filmes de propaganda nazi nos E.U.A. e atualmente paga jornais científicos da Elsevier que publicam investigação racista, com investigadores como Cavalli e Sforza, que ingenuamente ignoram os aspetos sociais e políticas na investigação da genética humana, com historiadores, arqueólogos, cientistas – sem abandonar o olhar crítico e científico que a motiva. Saini, através deste corpo de conhecimento que é fruto de um trabalho de investigação considerável, mapeia o território por onde a pseudociência racista – as “ciências raciais” e o racialismo – se movimenta denunciando os alicerces fracos ou pura e simplesmente inexistentes que a sustenta.

José Guilherme de Almeida

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Meninas na Ciência

O ano é 2021, muitos intitulam os tempos que vivemos de “novo normal”. Muito mudou no último ano, mas as desigualdades permanecem enraizadas no nosso quotidiano. Enquanto nos encontrávamos em quarentena enfrentando o que pensávamos ser o pior dos desafios, vimos milhares de pessoas, que se sentiram na obrigação de quebrar o seu isolamento social em prol da luta de direitos humanos fundamentais. Movimentos como o Black Lives Matter, manifestações antirracistas, antifascistas e feministas ocuparam as ruas um pouco por todo o mundo.
Dia 11 de fevereiro deparo-me, pela primeira vez, com a celebração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Perguntei-me na altura até que ponto não existiriam lutas mais urgentes, tendo em conta as inúmeras vozes injustiçadas que já se faziam ouvir por outras causas e a situação catastrófica em que se encontrava Portugal num culminar de uma segunda vaga. Então fiz o que qualquer jovem (de primeiro mundo) faria e fiz uma rápida pesquisa na internet para tentar perceber as dimensões do problema.
Os dados mais recentes divulgados pela UNESCO indicam que menos de 30% dos investigadores são mulheres e que a percentagem de prémios nobel atribuídos a mulheres são uns residuais 3%. De salientar ainda que, 35% dos estudantes que dedicam os seus estudos superiores às áreas STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) são mulheres e apenas 3% destas optam pela área das TIC (tecnologias da informação e comunicação).
De modo a empoderar as mulheres e numa tentativa de quebrar alguns estereótipos e desigualdades que as afastam da ciência, a ONU criou o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Chamo à atenção o facto de nesta data se celebrar também as meninas na ciência. Já todos estamos familiarizados (ou devíamos) com os obstáculos que são impostos às mulheres a nível profissional, contudo muitas das desigualdades têm origem na infância.
Considero que, a pouca representatividade das mulheres na ciência é um fator significativo para o desinteresse precoce nas STEM. Embora esta tendência tenha vindo a diminuir, é muito comum que raparigas tenham um contacto mais tardio com as ciências comparativamente com os rapazes. As diferenças de tratamento entre géneros são logo notórias nos brinquedos impingidos a uns e a outros, enfatizando logo na infância que existem tarefas de menina e tarefas de menino. Às meninas estão destinados brinquedos que estimulam os seus dotes como cuidadoras do lar, entre muitos brinquedos, temos cozinhas e utensílios de cozinha, baldes e esfregonas, bebés e respetiva parafernália. Por outro lado, os meninos têm uma maior probabilidade de serem expostos a brinquedos que estimulam o raciocínio e os introduzam ao mundo das ciências, com construções de vulcões ou kits de escavação de fosseis, por exemplo. Neste ramo destaco a “Science4you”, uma marca portuguesa que tem vindo a introduzir cada vez mais cedo brinquedos educativos e científicos nas brincadeiras das crianças independentemente do seu género.
Mais tarde, quando as crianças são confrontadas com a corriqueira pergunta “O que queres ser quando fores grande?”, as respostas femininas raramente roçam a área das ciências. “Médica” e “veterinária” talvez sejam das profissões mais mencionadas com uma base científica. Deduzo que tal se deva a um maior contacto por parte das crianças com médicas e veterinárias mulheres. A pouca representatividade de mulheres em profissões ou cargos que são historicamente catalogados como de homens, levam a que meninas coloquem estas posições completamente de parte ou as achem inalcançáveis. Como pode uma menina querer ser informática, por exemplo, se nunca se viu representada como tal?
Outro aspeto, um pouco mais sério, importante de realçar é a diferença de escolaridade que se verifica entre sexos, principalmente em países em desenvolvimento. Cerca de dois terços da população analfabeta é feminina. As estatísticas apontam que 9 milhões de meninas não chegam sequer a entrar para o ensino primário, contrastando com os 3 milhões de rapazes nas mesmas condições. De realçar que das 9 milhões de meninas sem escolaridade, 4 milhões são habitantes da África subsaariana. Assim, é fácil perceber que são as meninas as primeiras a abandonar os estudos aquando situações de carência ou vulnerabilidade. Fatores como assédio e abuso sexual, violência e impedimentos a grávidas também levam, pelas razões óbvias e também por falta de apoio, ao abandono escolar.
Um relatório da UNESCO publicado em outubro de 2020, relata que houve um aumento, de 73% para 89%, na taxa global de matrículas de meninas. No entanto, quando comparando com meninos, as meninas ainda são as mais prejudicadas, tendência que se espera vir a agravar devido às dificuldades decorrentes da pandemia da COVID-19.
Se me permitem, gostaria de realçar o excelente trabalho da Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), Catarina Furtado. O seu trabalho exímio e a sua dedicação para com as temáticas de igualdade de género e luta contra as desigualdades são verdadeiramente inspiradores.
Muitas são as mulheres e meninas que são merecedoras de mérito, quer pelos seus assombrosos contributos à sociedade e à comunidade científica, quer pelos obstáculos e adversidades que enfrentam. Não obstante, hoje, em modo de despedida, homenageio os nossos leitores que se juntam a nós nesta missão de tornar ciência acessível a todos.

Daniela Silvério

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Realidade ou Ficção? Eis a questão

Acordar, ter aulas, sair, tomar banho, dormir. Acordar, ter aulas, sair, tomar banho, dormir. Todos os dias repetimos uma rotina incessante, automática, quase mecânica. E os dias passam, acumulam-se, amontoam-se todos que nem sardinhas em lata, mas sem óleo para melhor descerem, amontoam-se na sua imensa amargura, cheios de melancólicos suspiros. E nós atrás deles corremos, ingénuos e sonhadores, pregando votos de grandes aventuras e míticas peripécias, tudo isto sem nunca sair do sofá. Mas problema isto não é, pois a imaginação para alguma coisa haverá de ter sido inventada, não concordam?

Por vezes esta última aventura-se um pouco demais, seja no grande planalto da melancolia ou nos surreais alpes da razão, e deixamos de vislumbrar o chão. Deambulamos por dentro da densa névoa de devaneios em busca de um misero pensamento coerente, decepando incontáveis cenários do que poderia ter sido, ou do que ainda há de ser, talvez por isso seja tão difícil o chão ver. Perdemos tanto tempo às grandes altitudes admirar, que para baixo fica de olhar. “Vive no presente, é o melhor que vais ter.” e “Esses anos são os melhores da tua vida”, estamos sempre a ouvir, e, no entanto, tudo o que fazemos é pedir mais, numa insaciável fome do que a vida nos há de trazer. E com tudo isto, toda esta correria, este interminável alvoroço de que fazemos quotidiano, é difícil deixar de pedir mais, de se contentar, de estar satisfeito. Isto implora então a pergunta, que devemos nós fazer? Ceder à pressão deste mundo em que vivemos, sucumbir e moldarmo-nos às paredes do sistema? Ou deixar-nos engolir por estas tão aliciantes fantasias, viver num mundo feito por este cerebral alfaiate? Bem, não me cabe a mim por vocês responder, como escritor quero somente assombrar-vos com a penumbra da realidade que a todos nos persegue. Vais-te deixar ser engolido?

Miguel Mota

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Aos primórdios da Consciência: seremos nós a abelha ou a colmeia?

Gostaria de iniciar este devaneio advertindo o leitor que o mesmo se trata de mera especulação teórica e não de uma tentativa de revogar qualquer crença ou ideologia individual, procurando apenas apresentar uma nova e fresca perspetiva do que somos ou a origem da capacidade de fazer essa mesma questão.

Quem sou eu? Ou mais especificamente, o que sou eu? Questões que arrebatam e assolam tanto o indivíduo singular como o conjunto da espécie desde os primórdios da nossa capacidade de racionalização dos estímulos que nos rodeiam e a intrínseca busca por conhecimento. A cruzada na busca incessante de respostas a estas questões, culminou em descobertas e acesso a conhecimento nunca antes expectados. Contudo, nenhuma capaz de fornecer qualquer resposta específica a essas perguntas.

Seremos nós, então, um produto da nossa própria consciência? Segundo diversas definições, o termo “consciência” pode ser atendido, em sentido lato, como a “perceção, compreensão e consciencialização do sistema interno e externo, a partir de estímulos, caracterizada por sensações, emoções, pensamento ou volição”. A teologia e as diferentes religiões podem até apresentar uma breve justificação para isso como “alma”, uma abstração que nos identifica individualmente e representa quem somos em todos os aspetos. Mas poderá, ainda assim, o conceito de consciência ou “alma” possuir algum ínfimo fundamento biológico?

Na tentativa de encontrar uma possibilidade de resposta a estas perguntas, é necessário recuar aos primórdios da história do processo evolutivo da nossa “máquina de pensar”- o cérebro. Os primeiros registos de exemplares ancestrais de neurónios, ou “protoneurónios”, terão sido identificados em seres unicelulares procarióticos primitivos, há cerca de 600 Ma. Estes, mesmo não possuindo neurónios em si integrados, apresentavam mecanismos específicos de sobrevivência com recurso a interações bioquímicas com o meio envolvente.

A hipótese aqui apresentada assenta, assim, nesta base: poderá a célula singular – o organismo unicelular, possuir uma forma ancestral do que consideramos como conceito de consciência atual? Seguindo este raciocínio, podemos ainda deduzir que, posteriormente, através de processos evolutivos de agregação celular e relações simbióticas com outros organismos, o surgimento dos primeiros seres multicelulares, dotados de novos e mais sofisticados mecanismos de interação a nível intercelular, poderá ter culminado na formação de uma teórica “consciência em colmeia”. Nesta, cada célula apreende informação do meio externo e transmite-a para as restantes células desse organismo, através de processos eletroquímicos, permitindo, deste modo, viabilizar e assegurar a sua sobrevivência através desta forma coletiva de proto consciência.

Consequentemente, através do processo de especialização celular e de tecidos nos organismos multicelulares, foi possível iniciar o desenvolvimento das primeiras redes neuronais, até ao surgimento do encéfalo e do sistema nervoso, semelhante ao atual existente. Esta adaptação poderá ter desencadeado um passo importante na especificidade da própria consciência, com a formação de um órgão e sistema específicos para as suas funções, com recurso a outros mecanismos associados à perceção da realidade e de estímulos externos e internos através dos diferentes sentidos.

Porém, um dos fatores evolutivos a ter ainda em consideração será também o conceito de “instinto”, comummente associado a comportamento animalesco irracional. Este é caracterizado como a capacidade de percecionar, reagir e adaptar a qualquer estímulo externo, em situação de perigo iminente, no mínimo período de tempo possível, sendo passível de se designar como o mais aperfeiçoado mecanismo de sobrevivência animal. Será então o instinto apenas um dos passos da travessia evolucionária na conquista da consciência racional? Se sim, que significado terá isso para nós enquanto espécie? Seremos nós assim tão especiais e distintos das restantes, quase divinos – a “espécie escolhida” – como nos fazem crer, apenas com base na nossa racionalidade, ou estaremos unicamente um passo adiante num mesmo trajeto evolutivo? Que implicações poderá isto acarretar na forma como interpretamos a natureza que nos rodeia, como seres iguais e não convencionalmente “inferiores” a nós?

Francisco Gamboa

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O antes e o depois

Hoje é quarta-feira e decido que não adianta mais chorar… tenho que encarar que agora a minha vida é aqui, Coimbra agora tem de ser casa, pelo menos assim terá de o ser nos próximos 3 anos, e no fundo estou perto de casa, sexta-feira é já daqui a dois dias. É nisto que penso antes de ir dormir, amanhã é quinta tenho um jantar de curso, tudo vai melhorar, penso eu… repito esta ideia muitas vezes para se tornar mais real. Acordo, ainda não entendo bem porque tenho que levantar a mão para o autocarro parar, afinal se existe uma paragem é para ele parar, mas bem, lá levanto o braço e entro. Já consigo ver algo de positivo, hoje já é quinta, já sei que se estica o braço para apanhar o autocarro e a praxe acaba já amanhã, pelo menos esta semana.

Enquanto subo as monumentais visto a t-shirt de caloira e penso em contar os degraus que tanto odeio, 125, 125 degraus que guardam história. Dou por mim a pensar em como os meus pais subiram estes mesmos degraus quando eram namorados, essa ideia agrada-me e aquece o coração, talvez nunca tenha pensado tanto em como gosto dos meus pais como nesta semana. Colocamo-nos em fila para a praxe e afinal dou por mim a pensar que até é algo divertido, o bicho mau de que tanto falam não parece assim tão perigoso, parece até engraçado, cansativo, é certo, mas muito melhor do que tudo o que tinha ouvido falar. Afinal de contas a Praxe não se revela o meu maior problema, tentar não me rir durante a mesma, esse sim, parece o dilema. No fim das aulas volto para casa e penso “que raio hei eu de levar vestido a um jantar de curso”, aliás “que raio vou eu falar no jantar”, mas a confiança é alguma, já tenho uma amiga e alguém que mora perto para não ter de voltar para casa sozinha, vistas as coisas o saldo parece positivo.

O jantar correu, a saída pós jantar correu e já estamos no último dia da primeira semana, o único dia em que já não como na cantina com aquelas que serão as caras que mais vou ver nos próximos 3 anos. Pequeno segredo, até agora os almoços tem sido a parte preferida dos meus dias, comer de mindinhos dados com os nossos colegas pode ser mais engraçado do que imaginam, comer almondegas e esparguete apenas com uma faca revelou-se o menor dos mistérios e sempre é um momento em que vemos outros tão apavorados quanto nós.

Lá vou eu para a paragem de autocarro de novo, sinto muito que a minha vida tem sido uma constante descer e subir de monumentais esta semana, mas desta vez tenho companhia, duas raparigas com quem falo, uma delas uma mocinha de caracóis muito simpática (foi esta a descrição que dei à excelentíssima minha mãe), uma rapariga com sotaque carregado do norte e uma rapariga do meu curso, penso que nunca falei com ela, não sei sequer como se chama, mas quando não temos pessoas próximas um conhecido é sempre melhor que estar só. Meto conversa com ela no autocarro, mas rapidamente recebo esta questão “também estás a odiar?”, sinto que foi a pergunta mais honesta que alguma vez recebi, ninguém gosta de admitir que está a odiar a primeira semana, ninguém gosta de admitir que lhe está a ser difícil fazer amigos, especialmente quando todos à nossa volta parecem estar a adorar. Uma pergunta tão sincera como esta fez com que achasse que aquela seria a minha amiga da Universidade, afinal, passei anos da minha vida a ouvir a minha mãe falar com amor das amigas da universidade a quem chamo de tias.

As semanas vão passando, começo a gostar de estar em Coimbra, a praxe parece ser algo positivo até certo ponto e já posso dizer que tenho mais que uma mão cheia de conhecidos com quem falo regularmente. Chega a latada, sinto-me feliz pois já tenho uma amiga, a mocinha dos caracóis tem-se revelado uma verdadeira amiga, e por sorte descobrimos que somos vizinhas e que as nossas madrinhas são amigas. A escolha da madrinha foi outra fonte de preocupações, como haveria eu de escolher alguém para me ajudar, guiar e auxiliar se mal conseguia falar com as raparigas do 2 ano? Mas seguindo a intuição acabei por fazer a melhor escolha alguma vez possível. Muitas vezes falasse das madrinhas com frases clichê, mas não haveriam clichês suficientes para a madrinha que escolhi. Uma madrinha com nome de flor, sentido de humor do melhor e um coração puro, talvez até demais.

Mas bem, passou a latada, tive direito às minhas orelhas de burro com uma dedicatória que guardo até hoje, ao meu fato de cowgirl, ao desfile por Coimbra com a menina dos caracóis e também com a menina com quem fiz amizade no autocarro, que ia muito engraçada vestida de M&M e com trancinhas que sobressaiam o seu ar doce, tive direito aos meus pais estarem presentes e aos comentários engraçados que as minhas irmãs faziam “afinal é isto vir para a universidade?” diziam elas enquanto se riam de alguns rapazes que desfilavam vestidos apenas com umas collants e sutiã.

Dias passaram e com eles chegou a primeira época de exames, tudo parecia complicado, apesar do estudo contínuo que havia tido ao longo do semestre sento-me na secretária em pânico antes de cada exame. Até que vem o primeiro chumbo, apesar de no futuro o vir a encarar como algo normal, que se ultrapassa, neste momento sinto-me perdida, nunca eu tinha chumbado a algo, como é que isto poderia estar a acontecer. Estudo, estudo e estudo, afincadamente com a minha companheira de estudo (e que mais tarde se revela também companheira de vida), a menina M&M, e juntas festejamos também a vitória e alívio de ter aprovação no recurso. Química geral torna-se decididamente um marco para nós, a primeira cadeira que fizemos em recurso.

Com o fim dos exames chega a altura das saídas, das festas, dos jantares, novas cadeiras, mas agora tudo parece melhor, já tenho o meu trio e mais alguns amigos com os quais saímos várias vezes. Até que… bem, até que todos somos mandados para casa. “Até daqui a 15 dias” diz a minha amiga dos caracóis. 15 dias passam e depois destes mais 15, outros 15 e começo a perceber que não vamos voltar. O meu ano de caloira acaba desta forma, com aulas on-line, convívios por Zoom, muitos áudios entre amigos e muita força para fazer os exames on-line. É em momentos como estes, em que pensamos que não vamos conseguir fazer uma cadeira, porque a ligação caiu, porque todos submetem ao mesmo tempo o exame e a plataforma vai abaixo, é nestes momentos que o nosso coração acalma quando olhamos para os quadradinhos do Zoom e vemos que as nossas amigas estão com o mesmo pânico que nós e sentimos que estamos nisto juntas. Talvez esta seja a maior lição que tiro do meu ano de caloira, nada se faz sozinha, a Universidade não se faz sozinha, e é graças a ela que criamos amizades, que embora curtas em tempo são mais fortes do que podemos pensar.

Inicia-se assim um novo ano, já não sou caloira. Em conversa com amigos ainda dizemos “os do segundo ano”, ao mesmo tempo paramos para respirar e retificamos “quer dizer nós”… Agora somos nós os doutores, já podemos somar ao livro de queixas a dor que os sapatos do traje causam ou o facto de capa ser muito quente para o outono, somos nós os que praxam, e verdade seja dita, praxar revela-se pior que ser praxado, somos nós os que olham para as caras ansiosas da caloirada e não conseguimos conter um sorriso, porque nos lembramos do que passámos e com ar sabichão dizemos “este ano estão cheios de sorte, fosse como o ano passado…”.

Este ano não é igual ao anterior, é diferente, exige mais cuidados, mas mesmo assim não deixa de ser especial, se bem que carrega consigo um travo agridoce, estou feliz por estar de volta a Coimbra, mas infeliz por não a poder viver como só um estudante de Coimbra o sabe fazer. No entanto, há coisas que nunca mudam, as monumentais continuam a ter 125 degraus, o Sr. Luís do Bar das Matemáticas continua com a sua boa disposição, embora se note alguma tristeza em não lhe ser possível dar os seus característicos dois beijinhos e aperto de mão, o meu grupo de amigos continua o mesmo, a minha madrinha continua a ser incrível e Coimbra continua a ser demasiado fria de manhã e quente de tarde e claro, os SMTUC continuam poder melhorar mas persistem em não o fazer.

Estamos em dezembro, vou lanchar com uma caloira, a qual acho muito simpática, aliás, dos poucos caloiros que conheci não existe qualquer razão de queixa. Passados alguns dias volto a falar com essa mesma caloira, até que chega o dia em que me pede como madrinha. É estranho pensar em mim como madrinha, ainda ontem era eu quem estava a pedir para ter uma madrinha. Mas bem, sou uma pessoa de sorte, pois além de ter uma madrinha incrível tenho também uma afilhada espetacular, sendo que por vezes sinto que existe uma troca de papéis uma vez que recebo mais conselhos do que aqueles que dou.

Mais uma época de exames passa e apesar de com algum custo, todas as cadeiras ficam feitas. Nesta fase já vou para os exames mais relaxada, existe sempre aquele nervosismo, mas já existe o lema “tudo se faz, nada fica para trás” muito presente na minha cabeça.

Voltam as aulas e já estamos em março. Neste momento a realidade não é a perfeita, estou em casa dos meus pais, sentada na sala, em confinamento, enquanto escrevo este texto e me relembro de todos os momentos passados desde que me matriculei na Universidade de Coimbra. Recordo os momentos vividos, mas penso ainda mais nos que ficaram por viver. Fica a esperança de que os possa vir a viver agora e que tenham um gosto ainda melhor, uma vez que são tão desejados.

Enquanto escrevo este texto sinto vontade de rir ao recordar os primeiros meses em Coimbra, penso em como as preocupações mudaram, como as prioridades mudam e em como agora é lógico que “Manutenção” seja uma paragem.

Posto isto, à rapariga que tanto chorava numa quarta-feira à tarde, que se sentia sozinha e perdida gostava de dizer “tem calma, tudo vai correr bem, vais adorar”. Hoje também é quarta e também sinto alguma vontade de chorar, mas por bons motivos, pois agora compreendo o clichê de que Coimbra é sinónimo de saudade. Para o ano serei finalista e a saudade já se começa a notar. Como em tudo na vida, também a licenciatura tem o seu fim, mas este fim será maior que os outros, pois aquilo que a licenciatura em Bioquímica me proporcionou e ainda irá proporcionar nada apaga. Coimbra deu-me amigos que levarei comigo para a vida, duas em particular muito especiais que estarão para sempre no meu coração, deu-me uma madrinha que será para sempre uma guia na minha vida, deu-me uma afilhada com quem sei que sempre posso falar, colegas de casa que se revelaram pilares em momentos de maior dor e aflição, pois também existiram momentos maus e ainda bem. No fundo, Bioquímica e Coimbra deram-me o maior bem que posso valorizar, liberdade e confiança para olhar para o futuro. Espero que seja um futuro risonho. Se tu também sentes que ainda estás no início amargo, calma, cada um tem o seu tempo, apenas te posso garantir que tudo o que deres a Coimbra, Coimbra dará em dobro. A todos os que cruzaram e ainda irão cruzar este meu percurso, um sincero “Obrigada”.

Ana Raquel Nossa

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Um Ano Atípico

É do conhecimento geral que a COVID-19 veio transfigurar a nossa realidade sobre o Mundo e claramente irá “viver” connosco durante mais alguns anos (espero que poucos).

Efetivamente, nem nós, os estudantes universitários conseguimos escapar às “garras” deste vírus cruel e, por isso, tivemos algumas dificuldades acrescidas no percurso académico, principalmente os alunos do primeiro ano que, tal como eu, ingressaram o ano passado na universidade.

Perguntam-me vocês agora, “Quais foram as maiores adversidades que os caloiros enfrentaram?“Porque é que esta “louca” pandemia foi mais severa para aqueles que entraram pela primeira vez na universidade?” Passo a elucidar-vos.

Na minha opinião, o mais difícil de gerir foi o processo de adaptação e a criação de novas amizades, visto que a interação entre caloiros e mesmo entre os caloiros e os doutores foi gravemente afetada e, por conseguinte, a entrada nesta nova fase da minha vida foi bastante diferente daquilo que ansiava. Como exemplo, a tão conhecida praxe académica da UC não se realizou, o que de facto penalizou imenso muitos estudantes do meu ano, uma vez que este evento aproximava todos os alunos do curso e permitia uma interação mais próxima entre todos.

Do mesmo modo, o uso de máscaras e o distanciamento social influenciaram esta avalanche de complicações no sentido em que também não tornaram nada fácil a comunicação com os pares. Como exemplo, sempre que me encontro com um colega temos de estar de máscara e cumprir o distanciamento recomendado, o que acaba por não só estragar o momento, como também diminui a nossa cumplicidade e funciona como uma barreira à criação de laços mais fortes.

Logicamente que as aulas também foram dadas de forma diferente (online) e isso acabou por afastar alguns alunos da universidade e acentuar mais a dificuldade de convivência. Não obstante, estas afetaram também a minha aprendizagem, visto que estar a ver um professor através de um ecrã em vez de o ver “ao vivo” não é a mesma coisa, tudo muda. Eu distraía-me muito mais durante uma aula dada de forma remota do que numa aula presencial e não tinha a mesma motivação para prestar atenção à aula, o que honestamente afetou o meu desempenho.

Tenho consciência que esta situação foi difícil para todos, mas, a meu ver, foram os caloiros os mais prejudicados. Peço que reflitam comigo: os caloiros nunca estão preparados para o choque que é entrar para a universidade, a quantidade de trabalhos, de frequências e toda a carga submetida é enorme, e ainda tinha de vir uma pandemia para ser a cereja no topo do bolo. Já para não falar que o primeiro ano tem o objetivo de dar a conhecer os novos colegas e isso, como já referi anteriormente, também foi muito dificultado.

Em jeito de conclusão, não quero deixar de referir que como caloira, senti necessidade de partilhar convosco a minha experiência e espero ter representado aqui a maioria dos caloiros de 2020 que vivenciaram também esta grande aventura. Decerto que o mais importante disto tudo é não desistir dos nossos objetivos e focar-nos no que realmente queremos e pensar que tudo vai melhorar. Sei que vivemos num período único que talvez seja recordado nos livros de história como “Uma das Maiores Pandemias”, no entanto, eu irei recordá-lo como “Os Loucos Anos 20”.

Sofia Carvão

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Cientistas em Portugal

Portugal pode ser um país invejado por muitos, afinal quantos são os holandeses, franceses e ingleses que se rendem ao nosso país e decidem passar as suas reformas, os seus últimos anos em terras lusitanas. De facto, Portugal tem o seu encanto, bom clima, boas praias, boas paisagens, boa comida (muito boa comida), bons vinhos, bons costumes, boa gente. Afinal somos um país calmo, o canto da Europa, somos simpáticos e quando há algum problema dizemos uns para os outros “não te preocupes, havemos de desenrascar”.

Talvez, o desenrasque seja mesmo a maior característica portuguesa, pois se há algo em que somos fortes é no desenrasque, já no planeamento a conversa é outra… Realmente Portugal tende a tardar na arte de planear, vejamos… tardamos a investir em novos modelos de educação, quantos de nós não sabemos despejar a matéria aprendida de forma sublime, mas pouco ou nada a sabemos aplicar no nosso quotidiano. Tardamos a planear um programa escolar que seja, efetivamente, bem estruturado, afinal quantas não foram as reformas a que já sujeitámos os estudantes portugueses nos últimos 15 anos? Tardamos a planear um desconfinamento, e quando finalmente o fazemos, conseguimos ter incongruências tais como abrir uma esplanada antes de retomar o ensino presencial, e, por último, tardamos a planear o plano de vacinação e quando finalmente o apresentamos, pouco ou nada corre como o esperado. Mas se desenrascar é a primeira característica portuguesa, protelar é logo a segunda e já nem causa surpresa no povo.

A minha questão passa por, até quando vai Portugal demorar a tomar uma atitude que evite a constante saída dos seus jovens do país? Quando irá Portugal, um país envelhecido, valorizar os seus jovens e não os enxotar (palavra feia, mas a que melhor se aplica) lá para fora?

Graças à pandemia que vivemos, foram finalmente valorizados todos os profissionais de saúde que não a classe médica, isto porque em Portugal ainda há o estigma de dizer com orgulho “Sabias que o filho do Tó Zé lá da terra é médico?” e ao mesmo tempo, “coitado, o irmão já não teve tanta sorte é auxiliar de saúde”. De facto, este preconceito poderia ser fácil de superar se não fosse também acompanhado por um preconceito salarial e de progressão na carreira, bem como de oportunidades. Enquanto futura bioquímica, curso que a maioria do país apenas descobriu que existia em 2020 graças ao mítico teste por PCR e incríveis vacinas de mRNA, preocupa-me o futuro (ou falta dele) que poderei ter em permanecer no país que me viu crescer.

Todos sabemos que a vida de um cientista em Portugal é tudo menos fácil e arrisco mesmo a dizer promissora. Quantos de nós já não ouviram a típica frase: “Bioquímica, mas isso tem emprego?”. Embora nós queiramos muito responder: “Sim, claro que tem”, sejamos realistas, terá mesmo um bioquímico o reconhecimento merecido? Ou será que não somos colocados na franja de empregos em que ouvimos “Só há lugar para os melhores, tenta lá fora”. A mim, aflige-me esta incerteza do amanhã, a incerteza de seguir (ou não) um mestrado orientado para a investigação, porque sejamos sinceros, todos sabemos a vida complicada que os investigadores têm em Portugal. A incerteza da existência ou não de uma bolsa, os contratos anuais ou de três anos a que podemos ficar sujeitos. A constante instabilidade. A falta de colocação. A exigência de um curso com várias saídas profissionais, mas sem qualquer valorização nas escolas. Nunca eu tive um professor que me dissesse que existia bioquímica, a questão costumava mais ser “medicina, farmácia, engenharia?”. Claro que agora atravessamos a febre das vacinas de mRNA, mas mais uma vez, os portugueses e os seus dirigentes, que têm memória muito curta, vão esquecer que nós, os cientistas, existimos. Aliás, muito se tem agradecido aos profissionais de saúde pela luta na pandemia, fico apenas triste de ainda não ter visto um dos principais canais de comunicação fazer uma reportagem sobre o burnout que os cientistas que criaram as vacinas em tempo recorde, os técnicos que todos os dias fazem milhares de testes PCR, os investigadores que em março de 2020, sem saberem qual o risco de transmissibilidade, os sintomas exatos, e demais pormenores arregaçaram mangas e começaram os estudos sobre o Sars-CoV-2 para ajudar a Humanidade. Talvez um agradecimento, umas salvas de palmas à varanda também soubessem bem, apesar de palmas não pagarem renda, mas os cientistas portugueses, que lutam por bolsas, também já não caem em devaneios de pensar em receber mais dinheiro por fazer o seu trabalho.

Portugal é um bom país, mas que deveria começar a investir mais na investigação. Portugal forma bons investigadores, mas parece que prefere vê-los de malas no aeroporto apenas com bilhete de ida. Portugal é um bom país, mas que realmente não planeia o futuro. Como será quando os cientistas que por cá ficam envelhecerem? Ou quando os cientistas jovens que cá estão se cansarem de lutar contra a corrente e forem para outros países europeus onde são realmente valorizados?

Muitas são as vezes que leio manchetes com títulos “Portugal líder na investigação de…” ou “Investigação portuguesa premiada…”, mas até quando, Portugal, até quando vais ler apenas as letras gordas e não vais investir nos jovens que aqui se formam e aqui querem ficar? Planear é uma arte, complicada, que requer esforço e visão, mas se nunca for alcançada nunca mais vamos deixar de ser um país sem oportunidades.

Ana Raquel Nossa

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Porque é que os modelos erram?

Ao longo das últimas décadas temos visto o florescer desenfreado das aplicações de ciências computacionais no mundo real – desde fotografias que ficam bem independentemente da incompetência do fotógrafo até tecnologias de vigilância em massa, o mundo foi tomado de assalto. Por causa disso, nos últimos anos temos sido forçados a olhar cada vez com mais atenção para estas práticas e a considerar a sua perceção para o público geral. Uma das situações a atrair mais atenção tem sido a pandemia COVID-19: da noite para o dia, toda a gente – desde cientistas com décadas de experiência até pessoas que aprenderam a dada altura a fazer um gráfico no Excel – quis ter a sua opinião. Um dos grandes produtos foram os modelos para prever o desenvolver da pandemia – como é que os casos vão aumentar? Onde vai parar o R? O que é o pico da pandemia? O que é um postigo e quando é que as esplanadas abrem? Os modelos tornaram-se em áugures de horrores e esperanças, em ferramentas de decisão. Contudo, por vezes erram. Porquê?

A vida numa folha de papel e o papel das aproximações na biologia

“Que cem flores desabrochem.”

Mao Zedong, revolucionário chinês e fundador do Partido Popular da China

“Não sou só uma e simples, mas complexa e muitas.”

Virginia Woolf, escritora britânica

O campo da modelação biológica – a descrição matemática e teórica de fenómenos biológicos – não é novo. Foi no século XIII que Fibonacci usou a, agora famosa, série de Fibonacci para descrever uma população de coelhos ao longo do tempo. Thomas Malthus, o infame economista britânico, criou modelos para o futuro da população humana na terra considerando um crescimento exponencial no final do século XVIII. Leonor Michaelis e Maud Menten estudaram processos enzimáticos de uma perspetiva dinâmica para chegarem à fórmula da cinética de Michaelis-Menten, o logaritmo que lhes vale agora estadia garantida em qualquer plano curricular de bioquímica. A biologia é composta em grande parte de fenómenos reais e difíceis de analisar que, ao serem simplificados, podem ser quantificados de uma forma abstrata através da sua descrição teórica e matemática – passamos a ter a vida representada numa folha de papel ou, mais recentemente, num chip à base de silício.

No entanto, não são propriamente estes os modelos que agora nos enchem os ouvidos – rodeados pelo clima pandémico, estamos cada vez mais atentos às curvas de casos, ao desenvolvimento do número de reprodução (o famoso R, que quantifica o número de pessoas que cada pessoa infetada infeta), ao efeito comparativo que diferentes medidas de confinamento ou intervenções não-farmacêuticas (INC) têm no decorrer de uma pandemia à escala mundial. É certo que a epidemiologia – a ciência que estuda os padrões e a frequência de eventos que afetam a saúde de uma determinada população – também em nada se assemelhava àquilo que vemos hoje. No século XIX, John Snow (não, não é esse) usou um mapa de Londres para assinalar os focos de contágio de cólera, conseguindo assim identificar a fonte da epidemia, uma bomba de água. Nesta altura pouco podemos dizer sobre a componente teórica da epidemiologia, era, afinal de contas, o nascimento desta área.

Atualmente a epidemiologia das doenças infeciosas e transmissíveis é uma área complexa, governada por uma diversidade de abordagens e focada na descrição de fenómenos complexos de transmissão e caracterização de doenças. Do ponto de vista da modelação e de forma muito genérica, muitas das estratégias usadas tentam quantificar a rapidez com que uma determinada população de indivíduos suscetíveis (S) fica infetada (I) e recupera/morre (R, durante o qual ficam imunes) – nasce assim o modelo SIR. Podemos considerar um modelo mais simples, em que os recuperados ficam de novo suscetíveis, nascendo assim o modelo SIS. Contudo, caminhar na direção da simplicidade leva frequentemente a explicações mais fracas e/ou redutoras – podemos então considerar que o estado R se divide em recuperados (novamente R) e mortos (D, do inglês deceased) e nasce assim o modelo SIRD. Podemos ainda acrescentar um período de incubação, durante o qual consideramos que o indivíduo ficou exposto (E) à infeção – nasce assim ainda outro modelo, o SEIR. Podemos ainda considerar que, algum tempo depois da recuperação, um indivíduo volta a ficar infetado, nascendo assim o modelo SEIRS. Reparem que o nome de cada modelo revela a trajetória de cada indivíduo numa circunstância em que a doença circula livremente. Contudo, quando incluímos vacinações em grande escala acrescentamos uma nova transição relevante: de suscetível para recuperado. Temos ainda ritmos de transição distintos entre cada estado consoante as terapias disponíveis, confinamentos implementados, INC (como a recomendação de máscaras e lavagem das mãos regular), demografia da população e disponibilidade dos serviços médicos – isto se nos focarmos em fatores quantificáveis (os fatores não quantificáveis, como a adesão da população a determinadas medidas ou aspetos culturais, são quase impossíveis de quantificar a uma escala nacional). De um fenómeno relativamente simples de compreender – alguém infeta outra pessoa – nasce um comportamento emergente com uma quantidade não quantificável de fatores, que são aproximados por uma quantidade crescente de métodos: de uma semente desabrocham centenas de flores.

Por norma, quando falamos em modelos matemáticos da COVID-19, estamos a referir-nos a uma abordagem semelhante a/ou baseada nas que foram descritas no parágrafo anterior. Contudo, a pergunta que se impõe continua por clarificar – porque é que erram? São os modelos que estão errados ou é a sua aplicação por cientistas que está incorreta? A resposta é complicada – algo que pode não agradar a quem se manifesta politicamente através de jogos de culpas. Mas prossigamos.

Posso não saber tudo mas posso saber o que não sei – incertezas

“Por muito bem que perceba algo, a minha compreensão só será uma fração infinitesimal de tudo aquilo que quero perceber.”

Ada Lovelace, matemática e escritora inglesa, autora do primeiro algoritmo a ser usado num computador.

“Há conhecidos conhecidos; há coisas que sabemos que sabemos. Também sabemos que há desconhecidos conhecidos; isto é, há coisas que sabemos que não sabemos. Mas também há desconhecidos desconhecidos – aquilo que não sabemos que não sabemos.”

Donald Rumsfeld, antigo secretário da defesa dos EUA.

Quando usamos um modelo para quantificar um determinado fenómeno biológico estamos, por definição, a aproximar um fenómeno complexo a algo que conseguimos medir. Por exemplo, se eu calcular quanto mede, em média, uma pessoa em Portugal medindo 500 pessoas que eu conheça – fingindo que eu conheço 500 pessoas – vou estar a cometer alguns erros de aproximação. E se eu conhecer muitas pessoas altas? A minha estimativa ficará então enviesada – o valor para a média de alturas que eu estimo usando uma amostra será diferente do verdadeiro valor da população.

O teorema do limite central (TLC) – um dos teoremas fundamentais da estatística – diz-nos que a aproximação de uma média é menos incerta quando o tamanho da nossa amostra é maior. Sem problema – supondo que eu sei que a média da minha amostra está errada, posso simplesmente medir pessoas que veja na rua (depois de lhes perguntar se o posso fazer, obviamente). Logo por azar a Convenção de Pessoas Invulgarmente Altas está a acontecer na cidade onde eu vivo, o que leva a que a minha amostra fique ainda mais enviesada. Isto prova que o TLC está errado? A resposta é não, apenas prova que eu me esqueci de uma das suposições do TLC: quando construo a minha amostra, devo certificar-me que a minha amostra da população é aleatória. As pessoas que eu conheço não são uma amostra aleatória, tal como as pessoas que vão à Convenção de Pessoas Invulgarmente Altas. É extremamente fácil deixarmos que um modelo nos “engane” quando nos esquecemos de respeitar as suas suposições.

Os modelos de epidemiologia têm suposições também – o modelo SIR, por exemplo, assume que há uma mistura homogénea de pessoas infetadas e suscetíveis, por exemplo, e outros modelos epidemiológicos assumem que INC atuam de forma linear e mais ou menos específica. É difícil que isto seja verdade – as pessoas doentes têm tendência a isolar-se e as pessoas suscetíveis têm tendência a afastar-se de pessoas que estejam infetadas, as INC não levam necessariamente a alterações lineares. Contudo, os modelos epidemiológicos – consoante os ajustes adequados – tendem a produzir estimativas que aproximam o mundo, mesmo quando algumas suposições não são exatamente verdade. Para fazerem isto englobam alguma quantidade de incerteza nas suas estimativas – este grau de incerteza não é mau porque nos permite quantificar com alguma precisão aquilo que efetivamente sabemos, abrindo alas à quantificação daquilo que sabemos que não sabemos. Atingimos assim um equilíbrio poderoso que permite que peritas e peritos aconselhem a classe política e responsáveis por saúde pública ao usarem modelos que são corretos o suficiente para criar cenários hipotéticos.

No famoso relatório 9 do Imperial College London, havia uma previsão para entre 400.000 e 550.000 mortes só no Reino Unido. Alguns negacionistas da pandemia pegam nesse relatório, abanam-no, enquanto batem no peito e dizem com as bocas cheias de fel e a cabeça cheia de nada: “se estes modelos estão assim tão corretos onde estão as mortes?! Isto é tudo uma PALERMIA (um dos meus neologismos preferidos)”. Bem, caro negacionista, percorrendo o relatório com os olhos, numa atividade melhor descrita como “ler”, pode ser contatada a apresentação de cenários distintos – se houver isolação de casos, quarentena de casas com casos de covid-19 e distanciamento social da população de fora intermitente (medidas adotadas pelo Reino Unido) esses 400.000-550.000 rapidamente, como que por magia, se transformam em 47.000-120.000. Um número terrivelmente alto, ainda assim. Um número que agora peca por ser insuficiente para quantificar o número de mortes por COVID-19 no último ano no Reino Unido – mais de 120.000. As previsões não acertaram, é certo, mas, tal como os modelos, as INC não são exatas – há um nível variável de adesão por parte do público, motivado pela falta de clareza na comunicação governamental, pela falta de explicações para medidas, pela frustração de estar confinado após algumas semanas ou meses. Fora do mundo da estimativa exata, o comportamento humano dá-nos razões para querermos quantificar a incerteza.

O lixo não se perde, transforma-se

“Estamos a encher as pessoas de informação. Precisamos de a passar por um processador. Um humano tem de tornar essa informação em inteligência ou conhecimento. Esquecemo-nos que nenhum computador irá fazer uma pergunta nova.”

Grace Hopper, criadora da primeira linguagem de programação intuitiva e pioneira da computação.

“Em duas ocasiões perguntaram-me “diga-me, Sr. Babbage, se puser na sua máquina os números errados, ela diz-nos a resposta certa?” (…) não sou capaz de compreender o tipo de confusão de ideias que pode provocar uma questão assim.”

Charles Babbage, inventor do primeiro computador mecânico.

Outro aspeto dos modelos que ainda não referimos e dos quais eles dependem quando são aplicados ao mundo real são os dados, esse chavão eterno que simboliza o conhecimento objetivo. Contudo, será um dado elementar para registar o decorrer da pandemia como o número de casos assim tão objetivo? Se olharmos de forma agnóstica para a forma como a pandemia COVID-19 se desenvolveu em Portugal vemos um aumento brutal na primeira vaga, variações periódicas semanais, plateaus. Será tudo isto real? Comecemos por considerar o efeito do fim de semana, durante o qual são feitos menos testes, levando a variações que não representam oscilações reais nos contágios. Consideremos ainda aumentos ou alterações na capacidade e regime de testes, que inevitavelmente levam a alterações no número de casos registados, sendo que a isto junta-se ainda a possibilidade real de falsos positivos e falsos negativos. Algumas destas variações são fáceis de colmatar – para o efeito do fim semana basta assumirmos que durante o fim de semana esperamos apenas uma fração dos casos esperados. As outras fontes de variabilidade são mais difíceis ou até mesmo impossíveis de quantificar e contribuem para a diferença entre modelo e realidade. Através da quantificação da incerteza que já referi conseguimos lidar com parte desta variação, mas parte dela não é quantificável – os modelos acabam por “falhar”. Ou melhor, os modelos não conseguem acompanhar a alteração nas suposições iniciais, como um ritmo e regime constantes de testes (podemos ainda assim incorporar esta informação no nosso modelo). Por outras palavras, se elaborarmos um modelo mal formulado ou que não é capaz de incorporar fontes de variação ou a incerteza associada às mesmas não podemos esperar bons resultados.

Posto isto, podemos ainda falar num modelo que falha? Sim, mas não podemos ficar por aqui – apontar o dedo a alguém é um exercício catártico, mas, em última análise, inútil; se não conseguirmos compreender a fonte do erro o progresso é impossível. Os modelos falham porque as suposições iniciais estão erradas, sejam essas suposições referentes aos dados que temos ou à maneira como as pessoas circulam pelo país. Essas suposições vêm das pessoas que elaboram os modelos, mas também vêm da literatura científica que foi produzida até à data, sempre em constante atualização e, em momentos-chave, em revolução acesa. Ultimamente, a grande responsabilidade de quem faz investigação e produz conhecimento científico é fazer não só perguntas, mas sim as perguntas certas – algo melhor demonstrado no épico da sci-fi pop Hitchhiker’s Guide to the Galaxy de Douglas Adams. Nele, perguntam a um computador superpoderoso qual é a resposta para o universo, ao que ele responde, depois de anos de cálculos: “42”. Ao ser feita uma pergunta demasiado vaga e sem conseguirmos restringir o campo de repostas possível, o computador deu a resposta mais exata que conseguiu para esse problema. Também a modelação no contexto epidémico sofre do mesmo problema – a resposta que um modelo nos dá não é à simples pergunta “como é que a pandemia vai progredir?”, mas sim à pergunta (mais complexa) “assumindo que as minhas suposições são verdadeiras e que o passado pode ser usado para perceber o futuro, como é que a pandemia vai progredir?”

A escolha das suposições, em última análise, é uma escolha que pode chegar a ser filosófica e subjetiva, mas que é também guiada pelo conhecimento disponível. Não são muitas as vezes em que um modelo pode ser considerado superior antes de ser posto à prova-os dados e a pergunta que queremos responder (devidamente feita) ditarão a melhor abordagem. Os modelos melhoram através de um processo iterativo e científico, com o aumento dos dados e conhecimento disponível. No entanto, é sempre importante manter em mente uma citação de autoria imprecisa: “é difícil fazer previsões, especialmente quando se trata do futuro”.

Considerando tudo isto, os modelos não perdem a utilidade – apenas têm uma utilidade que deve ser contextualizada. Com efeito, podemos comparar diferentes cenários pandémicos e tomar as melhores decisões na melhor altura. Enquanto que no início da pandemia as ações tomadas foram largamente preventivas, o que vemos a acontecer agora é uma série de governos a manobrarem e a balançarem uma miríade de fatores que incluem não só a saúde pública, mas também o estado psicológico e social da sociedade e a economia. Para isto, contam com peritas e peritos que combinam modelos teóricos e empíricos (que usam dados) e conhecimento da área para tomarem, pelo menos, decisões aceitáveis. Nem sempre corre da melhor maneira, mas a rede complexa de interações entre os vários eixos de uma sociedade leva a que tenha de haver compromissos: uma opção apenas se torna na melhor opção quando definimos prioridades – é preferível que haja um menor número de mortes ou um impacto económico mais ligeiro? Estas questões são, ultimamente, do domínio da política, pelo que não compete a este artigo respondê-las. Contudo, podemos indagar sobre o que acontece aos resultados dos modelos – e da sua incerteza – quando entram na esfera pública.

Os factos, ideologia e informação

“Não pode haver uma só história. Há apenas diferentes maneiras de ver. Portanto, quando eu conto uma história, conto-a não como uma ideóloga que quer pôr uma ideologia absolutista contra a outra, mas sim como uma escritora que quer partilhar a sua maneira de ver.”

Arundhati Roy, escritora e ativista indiana

“Fazemos para nós próprios imagens dos factos.”

Ludwig Wittgenstein, filósofo austro-britânico

“Não consegues polir um cagalhão, mas podes cobri-lo de brilhantinas.”

Autor desconhecido

Como já referi, uma medida poderá ser melhor ou pior consoante as prioridades que definimos – isto é motivado (também, mas não só) ideologicamente. Enquanto que certos quadrantes políticos irão ser maiores adeptos da manutenção da economia e da sua normalidade e colocam nessa manutenção a chave para que a manutenção da qualidade de vida seja mantida, outros pedirão que a mesma pare para que sejam salvas vidas. Nenhuma destas escolhas é motivada puramente por evidência, apenas por uma visão diferente da política – no primeiro caso, é elogiada a igualdade e liberdade enquanto expressões individuais dos meios materiais de cada indivíduo e da sua capacidade de participar no mercado. No segundo caso é elogiada a igualdade e liberdade enquanto a capacidade que um individuo tem em viver uma vida em que as suas condições – materiais, sociais, e não só – ditem o seu direito a uma existência digna.

Algures no meio, algures mais nos extremos, algures perdidos ou até mesmo algures fora do espectro que mencionei, toda a gente vai ser influenciada até certo ponto por aquilo em que acredita quando interpreta um número, um dado, uma figura – assim é a ubiquidade da ideologia. Pedidos por uma política, constituição ou medidas contra a pandemia covid-19 “sem ideologia” são pedidos vazios – pretendem apenas enaltecer uma falsa visão de que há política sem ideologia, assumindo que o conjunto de princípios que rege a sociedade ocidental não é ideológico, assumindo que há um estado fundamental que existe para lá da história; de facto, consoante o objeto de estudo que tenhamos, pode ser relevante, irrelevante ou contraproducente assumir que o mundo sempre foi assim. Numa história popular, um peixe velho diz a dois peixes mais novos: “Olá! Como está a água?” e continua a nadar. Um dos peixes mais novos olha para o outro e pergunta: “O que raio é água?” – se nascemos, crescemos e vivemos enterrados rodeados por uma ideologia dominante pode ser difícil reconhecê-la como ideologia. Deixemos, contudo, estas considerações durante o resto deste texto: falta-nos ainda perceber quando é que os resultados de um modelo se convertem numa questão de opinião.

Finjamos por um parágrafo que somos uma equipa de modeladores e epidemiologistas.

Quando calculamos um valor para o R em Portugal, estimado em a=1, mas provavelmente entre b=0,9 e c=1,1 (um intervalo que contém a) é só isso que ele é. Um conjunto de três números, o primeiro a oferecer uma estimativa do “valor esperado” e os outros dois a oferecerem um intervalo de confiança (uma medida de incerteza). Para o compreendermos melhor temos de o contextualizar temporalmente – queremos saber se faz parte de uma tendência crescente ou decrescente, ou se tem estado relativamente estável. Para além disto, há também interesse em comparar este valor com aquele que observamos noutros países – portanto para Espanha teremos um outro conjunto de valores que correspondem a a, b e c. Podemos até comparar para ambos os sítios a maneira como estes valores evoluem, extraindo assim informação sobre a aceleração da pandemia. Contudo, não nos podemos esquecer que todos estes cálculos envolvem suposições. Adicionalmente, quando queremos comparar medidas concretas implementadas em vários países e o seu impacto relativo no R, temos de aproximar uma série de coisas – temos de supor que as medidas terão um impacto semelhante em qualquer país em que sejam aplicadas, podemos ter de supor não só que cada país é homogéneo, mas que todo o conjunto de países é homogéneo, podemos ter de supor que o comportamento e adesão às medidas de todos os indivíduos em todos estes países é semelhante. Temos, por norma, de supor bastantes coisas.

Este complicado exercício de suposição não é errado, mas requer uma capacidade de oferecer explicações para, por exemplo, o porquê de o fecho das escolas ter um impacto tão considerável no R. Dentro de uma esfera de especialistas, quem percebe do assunto pode discuti-lo sem que haja más interpretações – poderá haver discórdias, mas em grande parte dos casos serão suportadas por dados ou hipóteses legítimas geradas por outras pessoas envolvidas no processo de investigação. Isto acontece porque em qualquer caso haverá sempre uma parte significativa da “verdade científica” que é inacessível – a pesquisa oferece-nos estimativas, mas elas são apenas isso, estimativas, que serão validadas (ou não) pela realidade observável ou por futuras gerações de jovens cientistas.

Até aqui há discórdias, mas não há, normalmente, questões ideológicas. Isto é algo que se verifica em maior parte dos casos, mas é importante manter presente na memória que em tempos a ciência ajudou a perpetuar crenças racistas e machistas e ajudou a justificar genocídios. Estes são exemplos claros e boçais de quando a “ciência” esteve ao serviço da ideologia, como uma arma empunhada por homens e instituições execráveis. Contudo, para este caso, vamos considerar o nosso caso simples – dados, modelo, resultado – em que a interpretação subjetiva dos factos tem pouco por onde existir. E claro, neste caso, haverá discórdias relativamente aos métodos aplicados e às suposições usadas, mas é por isso que a variedade de abordagens legítimas pode ser importante na ciência – permite-nos construir uma ideia mais completa daquilo que é a realidade quantificável. Ao passarmos para o domínio público – através de conferências de imprensa, reportagens, entrevistas a especialistas, etc. – é que começamos a ver um fenómeno de simplificação brutal. De forma a tornar uma mensagem o mais abrangente possível, temos de simplificar alguns aspetos técnicos e teóricos. Isto, por norma, não tem mal, mas cria situações em que a comunicação é frequentemente ambígua – por exemplo, quando falamos no “pico da pandemia”, a que é que nos referimos, em concreto? Conseguimos realmente estimar o dia específico ou apenas um intervalo de dias? Estamos a falar do pico de infeções, de contágios, de casos ou de mortes? Isto cria a possibilidade de que sejam feitas interpretações, que podem ser informadas por conhecimento na área ou egoístas, e que correspondam à realidade que mais convém à nossa narrativa interna, à nossa ideologia temos toda uma ilusão montada por nós a partir das simplificações que ouvimos nos meios de comunicação social e através da classe política ou outras pessoas. Outra frequente miragem vem da reportagem diária do número de casos – cria-se uma ilusão de que a variação que medimos por dia é relevante e absoluta, quando o que nos interessa são tendências que duram semanas e não nos é dito quantos testes foram feitos.

Neste crivo de informação pelo qual o conhecimento passa resta pouco de científico – apenas o que cada especialista considera suficiente – mas muito de especulativo; ficamos reféns das nossas imagens do mundo, reféns da história que cada especialista nos quer contar. Talvez seja uma especialista em virologia e, portanto, tente transmitir-nos uma mensagem mais focada na sua área, ou talvez seja uma médica pneumologista e crie para nós uma imagem diferente. Por vezes há até modelos contraditórios, deixando-nos perdidos neste universo de resultados concretos com pouco contexto. Por vezes o mesmo resultado pode ter alguma ambiguidade, abrindo portas a interpretações que favorecem que as faz.

Por isso, quando um modelo erra é difícil percebermos o porquê – não sabemos grande parte das decisões que foram feitas para chegar à estimativa final, apenas que está mais ou menos certa (isto quando temos acesso sequer às estimativas geradas pelo modelo). Uma classe política que se preze minimamente deve disponibilizar detalhes técnicos e científicos sobre os modelos que usa, deve esforçar-se por tornar disponíveis dados, algoritmos e modelos em tempo útil, deve colocar-se numa posição de escrutínio e deve exigir tudo isto a quem consulta. É gratificante ver que a política recorre à ciência para tomar as suas decisões, mas não é gratificante ver que, ao fazê-lo, participa num processo de ocultação da ciência que usa, resumindo tudo a elaboradas apresentações de difícil acesso e pouca documentação. Esta linha de pensamento, que vai de “especialistas disseram que X é bom” a “nós fizemos X” num só movimento não é capaz de criar confiança pública nas instituições científicas. Claro que, se as medidas resultarem num bom desfecho, as pessoas estarão mais dispostas a confiar em quem toma decisões e na ciência em que se apoiam. Mas e se isso não acontece? Como é que nós, cientistas interessados em informar o público, podemos explicar porque é que os modelos erram quando não os podemos ver? Como é que impedimos alguém de interpretar dados de forma indevida quando não há meios claros de o impedir? Como é que podemos reverter o efeito nocivo das teorias da conspiração quando o conhecimento é inacessível? Há quem acredite que há um dever inerente à profissão científica que nos coloca a todos – investigadoras e investigadores – numa posição em que devemos permitir que aqueles à nossa volta percebam melhor o mundo. Eu acredito nisso e gostava de poder fazê-lo mais frequentemente. Para isso, contudo, preciso de maior transparência e de uma política de acesso aberto sobre os painéis de especialistas num formato que permita o escrutínio. Já é feito – até certo ponto – por algumas instituições com membros que aconselham o governo, como o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. No entanto, é também preciso que haja um esforço à larga escala por educar todas e todos quanto à melhor maneira de analisar estes relatórios, quanto às suas limitações. É importante que as pessoas confiem na ciência, mas também é importante que a ciência se converta em algo inflexível e dogmático ou, por outro lado, em algo que é distorcido e moldado até dar uma resposta que não tem. É preciso que percebamos que, tal como Carl Sagan disse, “a ciência é mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimento”. Mais do que um conjunto de verdades, a ciência é um processo que tenciona revelar quantidades cada vez maiores do mundo. Para isso, temos de deixar que ela nos guie.

José Guilherme de Almeida

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2020, o ano que nos fez pensar sobre ciência

Ao falar da atualidade mundial, a COVID-19 é um tema incontornável. Afinal de contas, esta doença maldita condiciona as nossas vidas há mais de um ano, tempo demais! Mas façamos um exercício simples e olhemos para os números. À data em que escrevo esta crónica, em finais de março, o total acumulado de casos confirmados de COVID-19 ascendia a cerca de 130 milhões, que se traduzem em cerca de 2.8 milhões de mortes. Em comparação, na afamada gripe espanhola, as estimativas apontam para 500 milhões de casos que resultaram num número de mortes que alguns especialistas menos conservadores dizem ter sido de 100 milhões de pessoas. É certo que a pandemia de COVID-19 ainda não acabou e parece longe disso, mas creio que é seguro dizer que o impacto funesto desta pandemia ficará felizmente muito aquém de outras no passado.

Mas como explicar tamanha discrepância de fatalidades entre as duas pandemias supracitadas? Certo é que há diferenças naturais intrínsecas entre o coronavírus que causa a covid-19 e o vírus influenza que causou a gripe espanhola, mas isso não explicará tudo. A resposta correta está na ciência, isto é, no conhecimento muito mais alargado que hoje temos sobre todos os aspetos deste mundo. São os avanços científicos que permitem que os cuidados de saúde primários sejam cada vez mais acessíveis e abrangentes. É a tecnologia que a ciência possibilitou que permite que a higiene seja hoje um dever de cada um e não apenas um luxo das elites. Foi a ciência quem trouxe terapias cada vez mais eficientes e eficazes. E claro, algo mais específico desta pandemia, foi a ciência quem nos deu em tempo recorde armas para a contra-atacar e para evitar que se tenha de expor toda a população a este desapiedado vírus.

Perante a evidência, acaba por ser um pouco paradoxal que a ciência seja o parente pobre das políticas governamentais. Eu percebo, ela não dá resultados a curto-prazo, por isso uns milhões nela aplicados seduzirão sempre menos eleitores que os mesmos milhões aplicados noutros setores, mas a realidade é que foi nela que alguns países se fiaram para se tornarem em potências económicas, sendo que a Coreia do Sul e Israel são os dois exemplos mais bem-sucedidos. E é também paradoxal que muitos órgãos de decisão optem por ignorar aquilo que os cientistas dizem, seja porque não lhes dá jeito aceitar a realidade, seja porque não querem acreditar, ou seja, simplesmente, por pura ignorância. Recentrando o debate na COVID-19, há dois exemplos que ilustram na perfeição esta premissa. 1) Em 2015, um artigo publicado na revista Nature Medicine mencionava os perigos de um grupo de coronavírus que se encontrava a circular em morcegos (para ler, pesquisar pelo seguinte doi: 10.1038/nm.3985). O guião de “cientista ignorado que acaba por prever um futuro catastrófico” é digno de filme de ficção científica, mas dá que pensar. O que seria o mundo hoje se o trabalho destes cientistas tivesse sido efetivamente considerado? 2) A posteriori, embora ainda reine a discórdia sobre qual a forma mais correta de atacar a COVID-19, uma das poucas coisas consensuais é que as políticas aberrantes de Trump e Bolsonaro são tudo aquilo que não se deve fazer. O que é que ambos têm em comum? Ambos despreza(ra)m a ciência e os seus protagonistas. Aliás, dado o descontrolo da pandemia no Brasil (à data que escrevo) e dado que os vírus são capazes de se mutar com frequência, a atitude passiva/contraprodutiva do presidente brasileiro é um autêntico risco para o mundo inteiro, pois se aparecer um “novo” coronavírus derivado deste, mas que seja suficientemente diferente, há o risco sério de o mundo voltar à estaca zero nesta guerra global.

O principal combustível que alimenta esta fação de negacionistas é a incompreensão da ciência. Desconhecimento efetivo dos assuntos, mas também incompreensão acerca do método científico. Um bom cientista possui obrigatoriamente duas características: humildade e criatividade. Assim, e principalmente quando o grau de incerteza é grande (como agora) a criatividade dos cientistas leva a que haja uma série de opiniões diferentes sobre determinado assunto. Porém, à medida que as teorias são testadas, há a humildade de perceber quando é que determinada teoria é errada (ou menos boa), que natural e consequentemente é abandonada. Foi nessa ótica que os ingleses e os suecos desistiram das suas estratégias peculiares de combate à pandemia. Este aspeto é uma das melhores coisas da ciência. A ciência nunca será consensual, mas o que a move é a procura pelo consenso, sempre assente em evidências palpáveis. A procura pelo conhecimento é um processo que será sempre inacabado, mas todos os dias o nosso conhecimento aumenta.

Eu comecei este texto fazendo um paralelismo entre a pandemia que vivemos e a gripe espanhola. Permitam-me fazer uma afirmação corajosa, que é feita apenas e só por convicção: se a COVID-19 tivesse aparecido há 100 anos, sem que o mundo possuísse os avanços científicos do último século, a death toll não se firmaria em números tão modestos. Assim, a maior lição que a COVID-19 nos deixa é que a ciência, a inovação e o conhecimento são sempre a melhor resposta que a sociedade pode dar contra desafios exigentes como este, mesmo que o adversário seja novo e desconhecido. A evolução tecnológica da sociedade tem sido tão rápida que quase passa despercebido o papel da ciência, mas é minha esperança que esta pandemia seja o clique que faltava para abrir os olhos a muitos sobre o seu papel e sobre o seu potencial enquanto agente transformador do mundo. Espero assim que a COVID-19 tenha como consequência políticas reformistas e vanguardistas onde a ciência seja protagonista e não (como habitualmente) mera nota de rodapé, usada com o propósito uno de credibilizar decisões aos olhos do povo. Talvez eu seja um sonhador, mas como se costuma dizer, o sonho comanda a vida.

Cláudio Costa

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À Conversa com a Professora Dra. Irina Moreira

A Professora Doutora Irina Moreira licenciou-se em Bioquímica em 2003 e doutorou-se em Química em 2008 na Universidade do Porto. Concluiu um pós-doutoramento na área de Biofísica em Nova York. Em 2015 iniciou seu próprio grupo de investigação no CNC. Atualmente é professora auxiliar na UC. É também coordenadora do (novo) mestrado em Biologia Computacional do DCV.

MJ – Recuando até ao início: como surgiu o interesse pela ciência? E pelas ciências computacionais?

Sou uma pessoa metódica, organizada e assertiva e, também por isso, o meu interesse pela ciência. A ideia da constante evolução pessoal e da procura de saber mais e melhor foi sempre o meu foco e a minha ambição. Desde muito cedo que o funcionamento da vida me fascina e sempre vivi interessada em entender melhor o universo. Penso que a minha primeira paixão foi a astrobiologia, a procura de vida para além da Terra. As ciências computacionais surgiram ainda durante o curso de Bioquímica e foi uma consequência do meu desejo permanente de saber mais e melhor, encontrar respostas que não se obtêm nem a olho nu, nem em laboratório.

MJ – Qual o caráter translacional da sua investigação? Ou seja, como é que a sociedade pode ver as aplicações do seu trabalho?

A Biologia Computacional é uma área translacional, porque integra conhecimento detalhado de entidades moleculares (e.g.: DNA, RNA, proteínas, pequenas moléculas e lípidos) com informações variadas de aplicação na indústria farmacêutica, nomeadamente no desenvolvimento de novos fármacos e/ou na caracterização de novos alvos moleculares.

MJ – Na sua biografia (no site Moreira Lab) afirma que o seu objetivo é tornar-se líder na sua área de investigação, nomeadamente na interface entre as ciências computacionais e a biologia estrutural. Conseguia “desconstruir” esta interface para o público menos informado?

Atualmente, no meu grupo, temos investigadores e alunos com formação e interesses distintos. Desde o desenvolvimento de algoritmos variados utilizando ferramentas de Inteligência Artificial (IA) como a análise estrutural e funcional de complexos proteína-proteína, nomeadamente envolvendo sistemas membranares. Assim, através desta abordagem multidisciplinar, que envolve elementos de ambas as áreas, conseguimos responder com maior eficácia e rapidez às perguntas que os ensaios biológicos não encontram resposta.

MJ – Qual considera que tenha sido o ponto de viragem para as ciências computacionais?

O ponto de viragem foi o projeto de sequenciação do genoma humano

pois iniciou uma era de criação massiva de dados na Biologia para o qual foi necessário educar toda uma geração de investigadores nas várias metodologias a ser empregues na análise de big-data. Assim, as ciências computacionais têm vindo a ganhar dimensão à medida que aumenta a necessidade de respostas rápidas, nomeadamente de carácter preditivo, bem como da caracterização mais atómica dos vários sistemas moleculares.

MJ – Acha que a pandemia fez aumentar o interesse da população pelas ciências computacionais?

A pandemia acelerou a procura destas áreas que conseguem produzir ciência “à distância”. Os sucessivos confinamentos e a limitação de acesso aos laboratórios levaram a que as ciências computacionais se tornassem mais apelativas aos alunos e aos professores/investigadores. Uma das consequências desta pandemia foi a transformação digital das próprias universidades.

MJ – Qual foi o impacto da pandemia no seu trabalho? Foi um impacto positivo ou negativo?

No meu trabalho, a pandemia teve o impacto semelhante ao que ocorreu em todas as famílias com filhos menores em idade escolar, ou seja, a produtividade foi afetada pelo acréscimo de outras diferentes tarefas a desempenhar ao longo do dia. No entanto, a facilidade de continuarmos a conseguir trabalhar a 100% à distância, com o acesso ao cluster de alto desempenho (HPC) e utilizando plataformas de comunicação online, possibilitou aos alunos e investigadores do grupo o regular intercâmbio de ideias e materiais, interajuda e colaboração e, como tal, a nossa produção científica não sofreu grande impacto.

MJ – Ainda dentro da investigação, acha que por vezes a pressa que se tem em obter resultados e reconhecimento tem prejudicado a ciência?

Como em todas as profissões, a pressa será sempre inimiga da perfeição. Portanto, sim, a mentalidade de publish-or-perish, a necessidade do reconhecimento e de ser o primeiro a encontrar respostas levam por vezes à escolha de caminhos errados na investigação e à promoção e proliferação de investigações pouco criativas e de reduzida qualidade.

MJ – Em que projeto gostou mais de trabalhar e porquê?

Um dos projetos que gostei de trabalhar foi o “Deep learning in cancer drug discovery: a pipeline for the generation of new therapies (CRADLE)”, pois permitiu-me criar as condições para uma consolidação de conhecimentos e técnicas de IA por membros do grupo. Este projeto tem possibilitado a criação de novos modelos computacionais que vão desde as novas metodologias de Text-Mining, a algoritmos capazes de prever a existência ou não de sinergia de fármacos anticancerígenos. É fundamental sentir que a investigação não é estanque e que há uma constante evolução.

 MJ – O que a motivou a fundar/desenvolver um mestrado em Biologia Computacional na UC? Porque acha que esta área estava em falta? Quais foram as dificuldades que encontrou ao envolver 5 departamentos da FCTUC num só mestrado?

O desenvolvimento deste mestrado está em consonância com a minha visão multidisciplinar e agregadora das ciências computacionais. Um dos meus objetivos é levar os alunos a pensar mais além utilizando novas ferramentas. Este mestrado permite uma melhor preparação para enfrentar os novos desafios da ciência nas próximas décadas, a necessidade de conhecer e empregar técnicas de tratamento de big-data e de IA, conhecimento que está em fase exponencial de procura na indústria farmacêutica. Sem dúvida que é um desafio o envolvimento de diferentes departamentos, mas no meu caso faz parte do dia-a-dia pois lidero um grupo também ele multidisciplinar.  No entanto, o facto do MBC envolver maioritariamente professores recém-contratados pela UC, todos envolvidos na Summer School in Computational Biology, a decorrer com sucesso há já uns anos na UC, facilitou todo esse processo. Acrescento ainda que acredito que não se faz o caminho isoladamente, sendo muito enriquecedor aglutinar o que de melhor em cada área contribui para um objetivo comum: formar alunos motivados, curiosos e empreendedores.

MJ – Quais são as suas perspetivas futuras para a sua área de investigação? E para si e para o seu grupo?

A indústria farmacêutica e o desenvolvimento de novos medicamentos implicam decisões mais bem informadas no início do processo, o que significa uma identificação mais robusta e rápida dos candidatos a fármaco, mais direcionados para os ensaios pré-clínicos e clínicos. Tal permitirá reduzir o risco de falha dispendiosa em estágio final, melhorar a segurança dos ensaios clínicos e aumentar as hipóteses de entrada no mercado de sucesso. Iremos aproveitar o boom e a disponibilidade de dados, software/hardware mais fiável para produzir algoritmos e métodos capazes de prever e caracterizar novos alvos moleculares. Assim, pessoalmente, irei continuar a dar o meu contributo para a sociedade, enquanto cientista e docente, sempre com o objetivo de encontrar respostas e soluções rápidas aos problemas e proporcionar formação aos alunos para que sejam capazes de aceitar os constantes desafios do mundo em que vivemos.

MJ – Tem algum conselho para dar ao principal público da mRNA – os estudantes de Bioquímica?

Um conselho será que percebam a importância das competências digitais e que embarquem rapidamente na era digital. A mensagem final é que sejam curiosos. A curiosidade permite criar, crescer e aprender! E isso, em qualquer área científica, é fundamental.

Maria João Silva

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Consequências dos microplásticos na vida humana

Entre as grandes causas dos problemas ambientais do mundo estão a poluição e o uso excessivo de plástico. A produção deste último tem vindo a aumentar ao longo dos anos e, embora a maior parte da população já esteja consciencializada para a importância da sua reciclagem, há ainda um grande desconhecimento acerca das suas consequências ambientais.

O principal problema do plástico é a nossa incapacidade de o destruir e eliminar do planeta. Entre 8 e 12 milhões de toneladas de plástico são despejadas nos oceanos por ano o que leva a um impacto enorme na vida marinha, e de algumas aves que acabam por se alimentar destes resíduos. No entanto, não é só nos outros animais que são encontrados plásticos, pois uma equipa de investigadores detetou microplásticos nas fezes de humanos.

Mas afinal o que são microplásticos? Os microplásticos são partículas microscópicas, com menos de 5 milímetros, que resultam da fragmentação do plástico e que contribuem para a poluição do meio ambiente, uma vez que são facilmente transportados pelo vento, chegando rapidamente aos oceanos. Estes fragmentos chegaram instantaneamente ao ser humano, pois estão presentes em embalagens, roupa e outros produtos à base de plástico que utilizamos no nosso dia-a-dia, mas também podem ser encontrados no ar que respiramos e na comida.

Embora ainda não sejam totalmente conhecidas as consequências que advêm da presença de microplásticos na nossa cadeia alimentar e no nosso corpo, alguns estudos recentes encontraram resíduos dos mesmos na placenta humana. Estas partículas passam deste modo para o feto, podendo causar problemas no seu desenvolvimento.

Para perceber melhor as consequências destes compostos no nosso organismo, é necessário conhecer os mecanismos fisiológicos relacionados com a sua deposição.

Quando os microplásticos são inalados, ocorre a sua deposição, que depende não só das propriedades destes compostos, mas também dos pulmões de cada pessoa. Muitas das substâncias tóxicas que são inaladas conseguem ser eliminadas através dos cílios e do muco, e, por isso, nunca chegam aos pulmões. No entanto, os plásticos têm uma área de superfície relativamente grande o que dificulta a sua remoção, sendo assim encontrados nos pulmões.

A inalação do ar poluído está associada a doenças cardiovasculares e pulmonares, uma vez que causa inflamação devido à resposta imunitária e libertação de citocinas e espécies reativas de oxigénio contra as partículas presentes no ar. Devido a estas possíveis consequências para a saúde humana, já foram adotadas estratégias pela União Europeia para combater a poluição por plásticos através da proibição do uso de alguns produtos de plástico descartável. Esperemos que o aumento do conhecimento acerca das consequências do uso excessivo de plástico seja um bom ponto de partida para o combate à poluição e que traga melhorias para a nossa saúde e a saúde do nosso planeta.

Margarida Quadros

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(Quimio)terapeuticamente ultrapassado?

Nos dias de hoje, pressupomos que o desenvolvimento científico é a resposta e por vezes a causa de quase todos os problemas que enfrentamos. No entanto, se fizermos uma breve análise à suposição em questão, chegamos a uma conclusão extremamente óbvia e assustadoramente concisa, ou seja, como se pode calcular, por mais desenvolvido que o homem esteja, tanto a nível intelectual e até emocional, teremos sempre questões em aberto e problemas recorrentes.

Atualmente, o cancro é uma das principais causas de morte no mundo, mas apesar dos avanços tecnológicos a nível do diagnóstico, esta doença permanece ainda uma espécie de desafio e por vezes incógnita na área da saúde. Basicamente, a patologia consiste na proliferação anormal/descontrolada de células, que podem invadir ou danificar os tecidos e órgãos circundantes. Por mais simples que esta breve explicação nos possa parecer, estamos na presença de um tema bastante complexo, que suscita de uma observação muito mais aprofundada… O corpo humano é constituído por triliões de células que se multiplicam através de um processo chamado divisão celular e este por sua vez, tem vários mecanismos de controlo, de modo a evitar erros, sendo também responsável pela formação, crescimento e regeneração dos tecidos saudáveis do organismo, logo estamos perante um acontecimento imprescindível para a geração e perpetuação da vida. Entretanto, tal como uma máquina, o corpo humano até pode ter uma taxa de insucesso mínima, mas apresenta-a e este facto é suficiente para trazer danos irreversíveis e, em alguns casos, causar uma “avaria sistémica”.

Passando à frente, um dos métodos tradicionais mais usados no tratamento desta doença é a quimioterapia, que consiste na administração de fármacos quelantes que destroem células cancerígenas, visto que estas possuem um alto teor em Cu2+, daí o uso de ligandos seletivos para o mesmo (este fator, interfere com os processos de crescimento e divisão das células neoplásicas). Embora esta terapia seja bastante eficaz, infelizmente, acarreta consequências muito negativas para o nosso organismo, devido à falta de especificidade, pois afeta também as células saudáveis como por exemplo, células sanguíneas e células que revestem as mucosas da boca, intestino e folículos capilares, levando ao aparecimento de sintomas indesejáveis e incapacitantes (cansaço, náuseas, vómitos e diarreia). No entanto, tendo em conta todos os efeitos negativos que a quimioterapia pode causar, esta ainda é uma técnica bastante usada quando se trata de tumores malignos.

Outro recurso (provavelmente o mais interessante do ponto de vista clínico) que se tem vindo a desenvolver nos últimos anos é a imunoterapia, que apesar de ainda não ser recomendada para todos os tipos de cancro estimula o sistema imunitário, de modo a combater esta doença.  Ao longo da última década, tem-se assistido a um acréscimo de ensaios clínicos, quer em contexto paliativo, quer como adjuvante. Os resultados demonstraram o seu benefício no controlo de alguns tipos de cancro, como o melanoma, o cancro do pulmão, da bexiga, do rim e linfomas. Existem diferentes tipos de imunoterapia, que podem ser dadas em forma de medicamento ou através de terapia de células estaminais, ou seja, são extraídas células imunes do doente que são modificadas em laboratório para atacar as células neoplásicas, quando injetadas novamente no corpo do paciente. Os efeitos desencadeados pela imunoterapia são muito diferentes dos da quimioterapia, não sendo tão agressivos para o corpo humano, mas observam-se alguns sintomas de autoimunidade, devido à reação do sistema imunológico contra as células normais do organismo, sendo os mais frequentes a vermelhidão e secura da pele, diarreia, colite, hepatite e problemas na tiroide. Finalmente, por mais que a imunoterapia seja um método inovador e bastante eficaz, nalguns casos, apresentando sintomas muito ligeiros em comparação com a quimioterapia, este recurso ainda se encontra em desenvolvimento. No entanto, decerto que com mais estudos clínicos e avanços tecnológicos, teremos resultados mais promissores, que provavelmente nos farão abandonar as técnicas mais tradicionais.

Mara Baptista

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Revolução no tratamento da Diabetes Tipo 2

Background

Sejam bem-vindos aos loucos anos 20 do século XXI! Estes são de facto tempos de grande incerteza e preocupação, à semelhança dos loucos anos 20 do século passado. O início do século passado ficou marcado pela Primeira Guerra Mundial (entre 1914-1918, aproximadamente 20 milhões de mortos) e pela pandemia de Gripe Espanhola (1918-1920, aproximadamente 50 milhões de mortos). A esperança média de vida para os homens era de aproximadamente 47 anos e de 50 anos para as mulheres, e para além de mortes acidentais como afogamentos, insolações, acidentes ferroviários, envenenamentos, ferimentos por armas de fogo, queimaduras, fraturas e luxações, as principais causas de morte eram:

  • Enterite e infeções gastrointestinais;
  • Tuberculose;
  • Pneumonia;
  • Doença Cardíaca;
  • Doença de Bright (Insuficiência Renal).

Atualmente, além da esperança média de vida ter subido consideravelmente para ambos os sexos, é justamente aceite por toda a sociedade que as principais causas de morte são:

  • Doença Cardíaca;
  • Cancro;
  • Doenças Respiratórias Crónicas;
  • Acidentes;
  • Acidentes Vasculares Cerebrais.

Sabe-se também que estilos de vida sedentários e dietas ricas em hidratos de carbono e gorduras saturadas são um dos principais fatores para o aparecimento de comorbidades que predispõem um paciente a desenvolver outras doenças. Um exemplo é a Diabetes Tipo 2, uma doença metabólica caracterizada pela resistência à insulina que geralmente evolui de obesidade e que pode levar a doenças cardiovasculares, insuficiência renal, cegueira e amputações. Muitos fatores da síndrome metabólica – um conjunto de 5 condições que podem causar doenças cardiovasculares, diabetes, acidentes vasculares cerebrais e outros problemas de saúde – afetam a função cerebral, como hiperglicemia crónica, complicações microvasculares, resistência à insulina, dislipidemia e hipertensão. Como se não bastasse, há também um crescente número de evidências epidemiológicas sugerindo que a resistência à insulina está associada a um risco aumentado de desenvolvimento de declínio cognitivo relacionado à idade, comprometimento cognitivo leve, demência vascular e doença de Alzheimer.

A diabetes pode ser prevenida, tratada e controlada através de uma alimentação saudável, atividade física regular e medicamentos para reduzir os níveis de glicose no sangue. Indivíduos com Diabetes Tipo 1 devem receber insulina por injeção ou bomba para sobreviverem. Em diabéticos do Tipo 2, cuidados alimentares, exercício físico regular e a administração de insulina também são usados para diminuir os níveis de glicose circulantes. Contudo, fármacos também são incluídos no tratamento do paciente de modo a garantir-se uma regulação da glicémia mais eficaz e completa. Seguem-se vários medicamentos usados no tratamento da Diabetes Tipo 2 e outros que prometem revolucionar as terapias já nesta década.

Metformina

A metformina (dimetildiguanida) é o tratamento de primeira linha padrão quando as mudanças no estilo de vida não atingem os objetivos glicémicos desejados. A metformina é um composto biguanida que reduz os níveis de hemoglobina glicada (HbA1c) ao inibir a gliconeogénese. Se a meta de HbA1c não for atingida após aproximadamente três meses de terapia com metformina, um dos cinco medicamentos de segunda linha pode ser adicionado ao regime de metformina: uma tiazolidinediona, uma sulfonilureia, um inibidor de dipeptidil peptidase 4 (DPP-4), um inibidor de cotransportador de sódio-glicose (SGLT-2) ou um agonista do recetor de peptídeo-1 semelhante a glucagão (GLP-1R). A insulina basal também pode ser adicionada à monoterapia com metformina.

Lixisenatida

Em julho de 2016, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou a lixisenatida (Adlyxin, Sanofi), um agonista de GLP-1R. A recomendação consiste numa injeção do fármaco uma vez ao dia na altura de uma das suas refeições, como um adjunto à dieta e exercícios para o tratamento de adultos com Diabetes Tipo 2. A aprovação foi baseada nos resultados do programa de ensaio clínico GetGoal e nos resultados do ensaio de Avaliação de Lixisenatida na Síndrome Coronariana Aguda (ELIXA). A ELIXA correspondeu à solicitação da FDA de dados que demonstram a segurança cardiovascular, que foi incluída numa carta de rejeição anterior. O programa GetGoal, que incluiu 13 estudos clínicos, avaliou a segurança e eficácia da lixisenatida em mais de 5 000 adultos com Diabetes Tipo 2. Todos os estudos GetGoal alcançaram com sucesso o objetivo primário de eficácia de reduções de HbA1c. Os efeitos secundários mais comuns incluíram náuseas, hipoglicemia e vómitos.

A lixisenatida está disponível em caneta pré-cheia descartável em dose única de 20 µg. Os pacientes também receberão uma caneta pré-cheia descartável em uma dose única de 10 µg que devem iniciar uma vez ao dia por 14 dias. No 15º dia, os pacientes aumentarão a dosagem para 20 µg uma vez ao dia.

Ertugliflozin

Ertugliflozin (Pfizer/Merck), um inibidor de SGLT-2 (de injeção oral, uma vez ao dia), demonstrou reduções significativas de HbA1c em dois estudos de fase 3 (VERTIS Mono e VERTIS Fatorial) em indivíduos com Diabetes Tipo 2. Os resultados do estudo mostraram reduções estatisticamente significativas em HbA1c para as duas dosagens de ertugliflozina testadas (5 mg por dia e 15 mg por dia). Como um inibidor do cotransportador 2 de glicose-sódio (SGLT-2), a ertugliflozina reduz os níveis de glicose no sangue, fazendo com que os rins removam a glicose do corpo pela urina. A ertugliflozina é rapidamente absorvida e eliminada principalmente por glucuronidação. Em maio de 2015, a FDA alertou que o tratamento com os inibidores SGLT-2 atualmente disponíveis, como canagliflozina (Invokana, Janssen), dapagliflozina (Farxiga, AstraZeneca) e empagliflozina (Jardiance, Boehringer Ingelheim), podem causar cetoacidose. Ertugliflozin foi aprovada pela FDA em dezembro de 2017.

FIAsp (ultra-rapid insulin aspart)

A Novo Nordisk desenvolveu o FIAsp, uma versão de ação mais rápida do NovoLog da empresa, para ajudar a proteger o NovoLog da erosão genérica em biossimilares. O FIAsp foi projetado para fornecer uma melhor correspondência com o perfil fisiológico da insulina prandial e produzir uma melhor resposta ao rápido aumento na necessidade de insulina após uma refeição em comparação com NovoLog. Em dezembro de 2015, a Novo Nordisk apresentou um novo pedido de medicamento para FIAsp à FDA para o tratamento de adultos com Diabetes Tipos 1 ou 2. O depósito foi baseado nos resultados dos ensaios de fase 3a ONSET 1 e ONSET 2, que envolveram aproximadamente 2100 adultos com Diabetes Tipos 1 ou 2, respetivamente. Ambos os estudos avaliaram a eficácia e a segurança do FIAsp na hora das refeições e após as refeições na redução dos níveis de HbA1c e no fornecimento de controlo de glicose no sangue pós-prandial. Em ambos os ensaios, o FIAsp foi comparado com NovoLog.

No estudo direcionado para a Diabetes Tipo 2 (ONSET 2), o FIAsp mostrou ser não inferior ao NovoRapid na redução da HbA1c. Um total de 881 pacientes com Diabetes Tipo 2 descontrolada com uma combinação de insulina basal e medicamentos antidiabéticos orais tiveram a sua terapia basal otimizada durante um período de execução de oito semanas. Os 689 pacientes que atingiram a meta pré-especificada de HbA1c de 7,0% a 9,5% durante a fase de execução foram aleatoriamente designados para a adição de FIAsp ou NovoRapid como insulina às refeições por 26 semanas. No final do estudo, a HbA1c média tinha melhorado de aproximadamente 7,9% para aproximadamente 6,6% em ambos os grupos FIAsp e NovoRapid. O FIAsp está disponível nos E.U.A. desde 2017 e foi aprovado pela FDA em outubro de 2019. A farmacêutica Novo Nordisk pretende disponibilizá-lo no dispositivo de entrega pré-preenchido FlexTouch e um frasco de 10 mL.

Rybelsus, Semaglutida Oral (NN9924, OG217SC)

O composto desenvolvido pela Novo Nordisk é uma formulação oral, administrada uma vez por dia, do agonista de GLP-1R. Este composto é nada mais nada menos que uma versão de um composto injetável chamado Semaglutida, que é administrado uma vez por semana. Esperava-se que o medicamento atingisse o status de blockbuster porque todos os outros agonistas de GLP-1R no mercado são produtos injetáveis. Foi aprovado pela FDA a 20 de setembro de 2019.

O composto OG217SC foi desenvolvido como uma formulação de comprimido, com um excipiente que aumenta a absorção, denominado N-(8-[2-hidroxibenzoil]amino)capril-tardio de sódio. Aquando do seu desenvolvimento, não existiam agonistas de GLP-1R orais comercializados.

Em agosto de 2015, a Novo Nordisk anunciou a decisão de iniciar um programa de ensaio clínico de fase 3ª com OG217SC. A decisão seguiu resultados encorajadores de um estudo de fase 2 de prova de conceito. O programa PIONEER consistiu em sete estudos envolvendo aproximadamente 8000 pacientes com Diabetes Tipo 2. Seis dos estudos avaliaram a segurança e eficácia de OG217SC, e um estudo examinou especificamente o perfil de segurança cardiovascular do medicamento.

Semaglutida

A Semaglutida (Novo Nordisk) também foi desenvolvida como uma injeção subcutânea uma vez por semana para pacientes com Diabetes Tipo 2. Vários medicamentos injetáveis ​​nesta classe já estão no mercado, incluindo Exenatida (Byetta) e Exenatida de liberação prolongada (Bydureon) da AstraZeneca, e Liraglutida (Victoza) da Novo Nordisk. Em junho de 2016, a Novo Nordisk relatou os resultados de dois estudos de fase 3ª da Semaglutida em adultos com Diabetes Tipo 2. No estudo SUSTAIN 2, a Semaglutida (0,5 mg e 1,0 mg) administrada uma vez por semana melhorou significativamente o controle glicémico em comparação com a sitagliptina (100 mg). No estudo SUSTAIN 3, a semaglutida (1,0 mg) administrada uma vez por semana melhorou significativamente o controle glicémico em comparação com a exenatida de liberação prolongada (2,0 mg).

Aprovado em setembro de 2020, a Semaglutida é o quarto agonista do GLP-1R no mercado administrado uma vez por semana.

Take-Home Message O mercado atual de Diabetes Tipo 2 está repleto de medicamentos de marca, genéricos e biossimilares. Todos esses agentes, entretanto, tendem a perder eficácia após três ou quatro anos de tratamento. Espera-se que estes medicamentos recentemente aprovados possam revolucionar o tratamento de Diabetes Tipo 2, se puderem efetivamente demonstrar a capacidade de fornecer um controle glicémico mais duradouro em comparação com os tratamentos tradicionais.

João Vieira

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Mars 2020

Depois de Curiosity em 2012, a NASA voltou a colocar este ano um rover na superfície de Marte. Perseverance, assim apelidado depois de um concurso nacional para crianças em idade escolar (tal como os seus antecessores), descolou da estação da força aérea de Cabo Canaveral em julho de 2020 e terá aterrado a 18 de fevereiro de 2021 na cratera de Jezero, que há milhões de anos foi o delta de um rio. Esta missão visa continuar a caracterização do ambiente do planeta vermelho, bem como contribuir para as questões de astrobiologia e preparar a exploração humana em Marte.

   O rover terá como missão a identificação de ambientes antigos que possam ter suportado presença de microrganismos e a procura de sinais da existência deste tipo de vida, recorrendo a uma broca capaz de recolher amostras do solo marciano e armazenando-as em tubos para que possam ser transportadas para Terra numa futura missão. Para além disto, o robot está equipado com tecnologia capaz de transformar o dióxido de carbono presente na atmosfera marciana em oxigénio, que poderá ser de importância vital para futuras explorações ao planeta. A missão inclui ainda tecnologias como sistemas de navegação e aterragem que permitem ao rover identificar terrenos perigosos e desviar a sua trajetória, sensores para a medição de fatores caracterizantes do ambiente do planeta como a temperatura, velocidade e direção do vento, humidade e dimensão de poeira, um helicóptero (Ingenuity), um espetrómetro de fluorescência raio-x de elevada resolução para a determinação da composição elementar da superfície marciana, entre outras. Para além disto, o robot incorpora ainda uma câmara e microfone, com os quais já foram obtidas imagens, vídeos e áudios que se encontram disponíveis no site da agência aeroespacial norte-americana para a comunidade geral, permitindo viagens interplanetárias virtuais num ano passado maioritariamente em confinamento.

Diana Santiago

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As vacinas contra o coronavírus “trocadas por miúdos”

A vacinação foi e continua a ser um dos maiores avanços do nosso mundo. Com as vacinas, pudemos deixar de combater doenças potencialmente mortais antes sequer delas aparecerem, jogando por antecipação. Devido às vacinas, fomos, enquanto sociedade, capazes de erradicar verdadeiras pragas, como a varíola, e de limitar outras, como o tétano ou o sarampo.

A história do desenvolvimento de vacinas já conta com muitos anos. Contudo, face à dificuldade que é criar uma vacina eficaz, só por duas vezes a ciência desenvolveu vacinas em menos de uma década: a da papeira demorou 4 anos, e a do sarampo demorou 9. Geralmente, este processo demora décadas e casos há em que mesmo ao fim de mais de 100 anos de investigação ainda não existe uma vacina universal verdadeiramente eficaz (como acontece com a malária). Foi assim deveras surpreendente que a comunidade científica, em menos de 1 ano, tenha conseguido desenvolver tantas e tão variadas vacinas para combater a covid-19.

Mas como explicar que o processo tenha sido tão célere desta vez? Uma das causas é o facto do mundo se ter unido em prol deste objetivo. Gastou-se dinheiro em barda e mobilizou-se gente como nunca. Outra das causas foi o facto de se terem começado testes em humanos muito mais cedo e das entidades reguladoras terem acompanhado este processo muito mais de perto, o que permitiu perder muito menos tempo nas questões burocráticas (que, atenção, são essenciais para garantir a qualidade, eficácia e segurança das vacinas). Mas a causa principal acaba por ser um conjunto de descobertas que permitem revolucionar este processo. Nos próximos parágrafos tentarei explicar sucintamente a biologia por detrás das mesmas.

Sistema Imunitário

Antes de explicar o funcionamento das vacinas, é necessário explicar como funciona o sistema imunitário (SI). O SI humano é definido como o conjunto de estruturas, barreiras, e processos biológicos que protegem o ser humano contra os ataques a que está sujeito. Os seus principais atores (embora não os únicos) são os leucócitos, vulgarmente chamados de glóbulos brancos, que são um autêntico exército biológico que anda em constante movimento ao longo do nosso corpo atento a ameaças, para poder neutralizá-las o mais rapidamente possível.

Tal como num exército há vários tipos de militares, também nem todos os leucócitos são iguais, sendo que cada tipo tem uma função especializada. As funções de ataque mais direto estão a cargo, entre outros, dos neutrófilos, macrófagos e linfócitos T citotóxicos. Algumas destas células são menos seletivas que outras (por exemplo, os neutrófilos são vulgares soldados rasos, enquanto os macrófagos são uma espécie de força especial que só atua quando é chamada à ação e só contra determinados alvos), mas, no fundo, o que elas fazem é destruir tudo o que seja considerado perigoso para o nosso organismo – os antigénios – como são bactérias, células infetadas por vírus, células a funcionar mal (por exemplo células cancerígenas), et cetera.

Depois de eliminar ameaças, algumas células (p. ex. os macrófagos) partem os antigénios em pedaços e apresentam-nos às células T auxiliares, que são os generais deste exército e coordenam uma resposta mais complexa. Em primeiro lugar, podem recrutar mais macrófagos. Em segundo lugar, podem mostrar o pedaço que receberam aos linfócitos B, levando-os a fazer duas coisas: 1) a produzirem anticorpos específicos para esse pedaço do antigénio, que são libertados depois no sangue. Se algum dia os anticorpos voltarem a contactar com o antigénio, este fica marcado e é depois descoberto rapidamente pelo nosso exército, não tendo assim tempo para causar doença; 2) ou a transformarem-se em linfócitos B de memória, que basicamente estarão sempre de sentinela para produzirem anticorpos rapidamente quando voltarem a ver o antigénio (ou, para ser mais correto, quando virem o pedaço que já conhecem). Por fim, as células T auxiliares podem também se transformar em células T de memória, que funcionarão também como sentinelas.

Importa dizer que isto é, claro, uma síntese muito curta e que a resposta imunológica é muito mais complexa que isto, havendo muitos mais players envolvidos na mesma.

O DNA e o processo de produção de proteínas

Outro conceito importante para perceber como funcionam as vacinas contra a Covid-19 é o de como são produzidas as proteínas nas nossas células.

Fazendo uma analogia imperfeita, as nossas células são como pequenas fábricas em que se produzem peças de todo o tipo, as proteínas. No núcleo das células (o escritório), está guardado o manual de instruções para produzir todas as proteínas humanas. Esse manual é o código genético: o DNA. Ora, existem milhares de proteínas humanas, pelo que se poderá deduzir facilmente que tal livro se trata de um verdadeiro calhamaço!

Suponhamos agora que, num determinado momento, é preciso produzir um parafuso. Não faria sentido o engenheiro ir ao escritório, pegar no DNA inteiro e mostrá-lo ao operário (o ribossoma), que obviamente ficaria perdido com tanta informação desnecessária para produzir um só parafuso. Assim, aquilo que o engenheiro faz é abrir o DNA na página certa e copiar as instruções para produzir esse parafuso para um papel. Essa cópia é o RNA mensageiro. Depois, o engenheiro entrega o papel ao operário, que olhará para lá e produzirá o parafuso desejado rapidamente. Com o parafuso feito, o papel deixa de ser necessário, e por isso é deitado ao lixo.

A infeção viral

Por fim, é preciso perceber como é que as nossas células são infetadas pelos vírus.

O primeiro passo na infeção viral é a infeção per se, isto é, a entrada do vírus nas células. Este mecanismo varia de vírus para vírus. No caso do coronavírus, ele aproveita um recetor que existe à superfície das nossas células e usa-o como porta. Como é que ele faz isso? Fá-lo porque consegue usar os seus espinhos como puxador.

Enfim dentro da célula, os vírus comportam-se como terroristas dentro da fábrica, fazendo dos operários reféns e obrigando-os a produzir o que eles quiserem. Em concreto, os vírus obrigam os operários a produzir as suas próprias proteínas, ou seja, a produzir peças necessárias para que se possam “montar” mais unidades do vírus.

Por fim, quando todas as peças para montar um vírus inteiro estiverem prontas, um vírus novo é “montado” e é exportado para o sangue para ir infetar mais células.

As vacinas old-school e as novas formas de fazer vacinas

Tradicionalmente, a forma de vacinar pessoas mais comum é através da introdução do próprio antigénio, obviamente tratado para que não seja perigoso. Isso pode ser feito de diversas maneiras. Só para dar um exemplo, no caso da vacina da gripe, injeta-se as pessoas com o próprio vírus só que previamente destruído. Quando as células do sistema imunitário encontram estes “cadáveres” no corpo, encaram-nos com seriedade e desenvolvem uma resposta imunitária completa como se estivessem perante algo perigoso. Sendo uma resposta completa, isso envolve a formação de anticorpos e de células de memória. Assim, no futuro, se as células de memória contactarem com um vírus vivo, rapidamente o atacam porque já sabem os seus pontos fracos.

O problema das formas tradicionais de fazer vacinas é que são muito morosas e difíceis. Encontrar formas de destruir ou inativar um antigénio sem o desfigurar completamente (pois assim ele ficaria demasiado diferente do original e depois as células do SI não o reconheceriam) é um desafio extremamente complexo, que redunda quase sempre em vacinas pouco eficazes e, portanto, inúteis. Felizmente para nós, nos últimos anos tem havido investigação para desenvolver vacinas de outras formas que permitem, acima de tudo, acelerar todo o processo.

Uma dessas estratégias faz uso do RNA mensageiro, o tal “papel”. Nas vacinas deste tipo, é então injetado nos pacientes um papel com as instruções para produzir proteínas inofensivas do antigénio, que é depois transportada no sangue até às nossas células. Lá, os operários olharão para o papel e, como não são pagos para pensar, simplesmente produzem o que lá está escrito. Quando tal coisa é produzida, as células do SI assustam-se e tratam essas proteínas como uma ameaça, produzindo também anticorpos e células de memória. Há pelo menos três vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia: a da Pfizer, a da Moderna, e a da CureVac. Nelas, as instruções que vão no papel são para produzir o espinho do coronavírus, que, fora do vírus, sozinho, não faz nada (relembro: é só o “puxador da porta”). Assim, mais tarde, quando pessoas já vacinadas são infetadas com o coronavírus, as células de memória podem nunca ter visto o vírus inteiro antes, mas como já conhecem o espinho, atacam-no logo porque se lembram dele como algo perigoso, sem dar tempo ao vírus de se reproduzir e causar a doença.

A outra nova estratégia para produzir vacinas faz uso de outro vírus, o adenovírus. Basicamente, lembrando-se que os vírus quando infetam as células fazem dos operários seus prisioneiros, os cientistas pegaram no adenovírus, tiraram-lhe o que consideravam inútil e puseram dentro instruções para produzir coisas que lhes interessam. No caso das vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia, os cientistas puseram nesses vírus instruções para produzir o espinho. Assim, nas pessoas vacinadas com uma vacina deste tipo, é injetado este vírus modificado e depois é só esperar que ele comece a infetar células. Quando tal acontece, os operários, reféns, produzem os espinhos do coronavírus e a partir daí o processo é igual ao das vacinas de RNA mensageiro. Entre as vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia estão a da AstraZeneca, a da Johnson & Johnson, e a vacina russa Sputnik V.

Ou seja, muito resumidamente, a grande diferença entre as vacinas disponíveis contra o coronavírus é que num caso os operários produzem espinhos sem o saber, e no outro produzem-nos porque estão reféns de outro vírus.

Como dá para perceber, com estas novas estratégias, a única coisa de que precisamos para produzir vacinas é o “manual de instruções” do antigénio. Assim que soubermos isso, é uma questão de meses até se montar uma vacina eficaz. No caso do coronavírus, fruto do trabalho incessante da comunidade científica, a sequenciação do genoma do vírus aconteceu em poucas semanas, pelo que rapidamente foi possível começar a trabalhar nas soluções. A utilização em larga escala de novas tecnologias para criar vacinas é algo que já vinha sendo preparado há anos, mas com a urgência da situação atual, a comunidade científica arrepiou caminho e apresentou-nos soluções verdadeiramente revolucionárias. O combate contra a covid-19 é a primeira aplicação das mesmas, mas certamente não será a última, pelo que podemos ter esperança no desaparecimento de várias doenças a médio-prazo com base em tudo aquilo que aprendemos neste último ano. Assim, num tempo com poucos motivos para celebrar, celebremos o progresso!

Cláudio Costa

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factos suecos

A Suécia é considerada um dos países mais desenvolvidos do mundo e a sua fama remonta até aos tempos dos salteadores Vikings, que invadiram, exploraram e colonizaram grandes áreas na Europa após o auge do Império Romano. A sua sociedade é muitas vezes referida como um modelo exemplar, mas sobrevaloriza a noção de espaço pessoal, dificultando a interação interpessoal. Para além do estereótipo da sociedade nórdica, existem bastantes curiosidades acerca dos Suecos que são desconhecidas pela maioria das pessoas e que surpreenderão qualquer forasteiro. Abaixo, serão descritos 4 factos sobre a sociedade e cultura sueca.

  1. Lördagsgodis – Sábado de Doces

Os Suecos, e as demais nacionalidades nórdicas, adoram comer doces. Com índices de educação, longevidade e consciência ambiental de causar inveja, este hábito não parece ser o mais saudável de todos. De facto, a história por detrás disto é um pouco negra. Nos anos 40 do século passado, as empresas de doces queriam demonstrar ao consumidor que a ingestão excessiva de doces não levava ao surgimento de cáries. Então, com o apoio do Governo Sueco, levaram a cabo uma experiência eticamente duvidosa até aos dias de hoje: forçaram doentes institucionalizados com distúrbios mentais a ingerirem quantidades enormes de doces. Determinou-se que a ingestão excessiva de doces causava o apodrecimento dos dentes. Após este estudo, foi declarado obrigatório que todas as pastas de dentes necessitavam de ter flúor na sua composição e uma nova tendência cultural emergiu: as crianças só podem ingerir doces aos sábados e é tradição irem com os pais escolherem as suas guloseimas favoritas, desde que estas não ultrapassem a quantia de 20 Coroas Suecas (2€, aproximadamente).

  1. Fika – O Coffee Break Sueco

Para os Suecos “fika” não é um momento revolucionário, mas sim uma atividade banal do seu dia a dia, pois consideram que é muito importante realizar uma pausa diariamente para refletir e descontrair. Esse abrandamento pode ser feito individualmente, mas normalmente preferem fazê-lo em grupo, quer com amigos ou colegas de trabalho. Tipicamente, ingerem uma caneca de café ou chá acompanhada com algum tipo de produto de pastelaria. Não existem grandes formalidades à volta do assunto e toda a gente é bem-vinda!

  1. A estranha história da vodka na Suécia

Para além de doces e de café, os Suecos adoram vodka! Contudo, a história da bebida espirituosa neste país não é absolutamente linear. A sua destilação, à base de uvas e grãos, iniciou-se no século XIV com o propósito do fabrico de medicamentos. No século XVI, as bebidas espirituosas tornaram-se bebidas de luxo e só no século XVII é que a vodka se tornou numa bebida recreacional acessível a todas as classes sociais. O seu aumento de popularidade levou à criação do monopólio de produção de bebidas espirituosas pelo estado em 1755 e a vodka passou a ser obtida através da destilação da batata na década de 1790 pois na altura este tubérculo era mais acessível que o trigo. A Sociedade de Temperança da Suécia foi fundada em 1837 e em 1860, a destilação doméstica era proibida no país, devido ao seu consumo excessivo. A sua venda pública foi bastante limitada e autorizada a apenas alguns estabelecimentos em cada cidade, que só a serviam durante as refeições e encerravam cedo à noite. Os lucros resultantes do consumo de vodka eram reinvestidos na sociedade e a medida foi considerada eficaz. As companhias locais de cada cidade fundiram-se no monopólio nacional de venda de bebidas alcoólicas (Systembolaget), que mantiveram o racionamento da venda de vodka até aos anos 50 do século passado. Com a entrada do país na UE em 1995, o monopólio estadual de produção foi terminado, mas ainda mantêm os direitos de comercialização até aos dias de hoje.

  1. Midsummer – Solstício de Verão

Além do Natal, o Solstício de Verão é o feriado mais importante do calendário sueco. Para alguns, o solstício de verão é o mais importante. Originalmente celebrado a 24 de junho, atualmente o Midsummer é celebrado entre os dias 20-25 de junho por toda a gente na Suécia. É um evento ao ar livre no qual as pessoas se juntam para um almoço interminável à base de arenque em conserva servido com deliciosas batatas novas, cebolinha e natas. Independente do género, toda a gente usa uma coroa de flores à cabeça, bebem os seus schnapps favoritos e cantam e dançam à volta de um poste também decorado com flores. O propósito desta festividade é festejar-se a fecundidade humana, no qual o poste simboliza o órgão reprodutor masculino.

João Vieira

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Bioética e éticas aplicadas: a necessidade de dar resposta ao problema da aplicação

Vamos entrar na era da Bioética. Nos dias de hoje, com a autêntica revolução tecnológica e científica que a humanidade está a assistir surgem, de tempos a tempos, novos problemas aos quais é necessário dar uma resposta prática, sendo que verificamos, de forma cada vez mais notória, que o direito e as éticas tradicionais são, por vezes, insuficientes para dar uma resposta em determinadas situações concretas. Em primeiro lugar, lancemos a seguinte questão: Será que podemos fazer tudo aquilo que a tecnologia e a ciência nos permitem ou será que é preciso estabelecer limites? Se a resposta for que podemos, então a Bioética e as éticas aplicadas não são necessárias, com todas as consequências que daí advém. Se acharmos que é preciso estabelecer limites, então precisamos da Bioética. Mas comecemos pelo princípio.

O termo Bioética foi cunhado durante a década de 70 do século XX por Van Rensselaer Potter, tendo a sua definição sofrido alterações com o decorrer das reflexões acerca do tema. A Bioética trata-se de uma área multidisciplinar que pretende articular o conhecimento de disciplinas, tais como: antropologia, biologia, sociologia, filosofia, psicologia, economia, direito, política, ecologia, etc. Consiste na constatação de que a reflexão ética, não deve ficar pela mera fundamentação filosófica, mas tem também de responder ao problema da aplicação nas situações concretas. Isto é: não se trata exclusivamente de uma teoria, trata-se também da necessidade de proceder a deliberações; deliberações essas que devem conduzir a uma atuação com sabedoria prática na aplicação aos casos particulares. É necessário passar da teoria à prática. As deliberações sobre o modo de proceder nas situações concretas devem ser feitas sempre por comités ou comissões de Bioética constituídas por pessoas de várias áreas disciplinares: para garantir a pluralidade de pontos de vista e porque a deliberação não deve nunca ser feita por uma só pessoa.

Esta criação de comités de Bioética torna-se cada vez mais necessária, principalmente em áreas como a medicina, o ambiente, a política, mas também na economia e nas empresas. As principais razões são a preocupação com as pessoas, com as gerações futuras e com a salvaguarda da liberdade individual e do direito de cada pessoa escolher o melhor caminho para a sua felicidade. A preocupação pelas pessoas expressa-se através de reconhecer a dignidade do outro; a preocupação com as gerações futuras está intimamente ligada à noção de sustentabilidade; e a salvaguarda da liberdade individual com a ideia de que a ética deve garantir as coisas da liberdade que não se conseguem mediante a legislação jurídica (ou seja, ela deve garantir a articulação da lei normativa que é universal com a situação particular em que é necessário agir).

Nos próximos anos a Bioética será fundamental para garantir o bem-estar individual e coletivo das pessoas, assim como a sua liberdade, mas também para antecipar problemas que poderão vir a surgir. Uma das áreas em que é fundamental e que tem estado em destaque no debate público-mediático é no que diz respeito ao meio ambiente e às alterações climáticas. A existência de tecnologia e de mecanismos que maximizam o lucro, mas que agravam os problemas ambientais tem de ser seguramente melhor regulada por parte dos vários estados através de legislação, mas também deve ter uma componente de reflexão ética feita pelos vários agentes (desde os estados às empresas) de modo a garantir um crescimento sustentável.

Uma segunda questão, e que irá surgir em breve no debate político no nosso país, podendo até mesmo ser sujeita a referendo, é a eutanásia. Aqui a filosofia terá um papel fundamental no que toca à definição de conceitos. De facto, o debate sobre a possibilidade de antecipação da morte, em que casos isso será possível, e sobre qual o melhor modo de agir em cada situação que se apresentar será um dos momentos em que a reflexão ética vai ser mais precisa.

Outras questões em que a Bioética terá um papel decisivo serão na definição de quais os limites que devem ser colocados à manipulação genética (Será bom fazer tudo o que a tecnociência nos permite nesse âmbito?), mas também em relação ao uso das novas tecnologias como mecanismo de controlo.

A ideia chave que pretendo deixar é a seguinte: progresso científico-tecnológico e progresso humano não são a mesma coisa, isto porque nem tudo o que é tecnologicamente possível é eticamente aceitável. Foram a ciência e a tecnologia que permitiram a descoberta da penicilina, mas também permitiram a construção da bomba atómica. É a ética que deve deliberar o que humanamente deve ser usado.

Pedro Chaves, Mestrado em Filosofia

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Genes, Células, Clones e Gen(ÉTICA)

Darwin e a evolução das espécies. Deus Todo-Poderoso como entidade megalómana. Alma para lá do corpo. ATGC, o código universal como fonte de vida como a conhecemos. Cada um escolhe a crença através da qual rege a sua existência. Independentemente da escolha, ciência e religião, religião e ciência, entre outras questões mundanas de limiar inferior, embatem de frente numa linha de batalha que se chama ética. Esta serve o indulgente, o satírico, o intransigente e até o cético, servindo-se a si mesma de uma dose por medida das duas porções de uma mesma dicotomia.

Atente-se ao assunto da clonagem, primeiro na sua essência mais crua, a clonagem reprodutiva, e depois à clonagem mais “tolerável”, a terapêutica. Pondo de lado dogmas, limitações tecnológicas do nosso tempo (cada vez menos e, mais tarde ou mais cedo, solucionadas) e refletindo à luz de um pragmatismo em incubação, quais são as vantagens para a espécie humana, quer em termos de aplicação quer de custo-benefício? Negar o conceito torna-o menos real ou faz desaparecer as suas sub-formas de coexistência? Vai depender muito de que tipo de clonagem estamos a falar.

A clonagem, sem grandes definições e embelezamentos, designa a obtenção de seres vivos (animais, vegetais ou microrganismos) geneticamente iguais, por meio de um processo de reprodução assexuada. Em decorrência da crença inabalável e irreproduzível da vida humana, a possibilidade de duplicar/copiar um ser vivo encontra, no campo da ética, “razões que a razão conhece” que, logo à partida, são contestáveis. É considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como eticamente inconcebível. A ideologia que sustenta essa posição da OMS deriva do racionalismo individualista de Kant que, na sua interpretação filosófica, concluiu que o homem é um fim em si mesmo, sendo eticamente incongruente considerar o indivíduo enquanto meio para um fim eugenista da espécie humana. Ora, está pois claro que ao comentar sobre clonagem reprodutiva, principalmente na nossa espécie, saberemos instantaneamente que é um campo minado. Perigoso, portanto. Sobretudo se o tema puder ser radicalizado a um extremo que aflora muito longe do nosso “perímetro de segurança”.

Vejamos o caso de Claude Vorilhon, ou Raël, ou o “homem dos clones”, como também é conhecido. Acredita que a clonagem de humanos é a “fonte para a vida eterna”. Diz ter sido raptado por seres extraterrestres em 1973, os quais lhe terão revelado a verdadeira origem da Humanidade: fomos criados em laboratório por estes, os Elohim. Raël é o líder da seita Raeliana, que questiona a teoria da evolução, defendendo a clonagem humana, e que está por trás da Clonaid, uma empresa que em 2002 alegou ter clonado o primeiro ser humano, Eva. Foram solicitadas, tanto pelos tribunais americanos como por vários cientistas, provas dessa clonagem, coisa que nunca veio a ser entregue pela Clonaid, estando longe de se provar tal acontecimento.

A clonagem reprodutiva, feita pela 1ª vez em 1996 com a ovelha Dolly a ser o primeiro mamífero clonado a partir da célula de um animal adulto, despertou o interesse mundial sobre o assunto, tendo incendiado opiniões e incitado a debates sobre implicações éticas, como já sabemos. Para clonar a Dolly, foi transferido material genético do núcleo de uma célula somática de um dador adulto para um óvulo cujo núcleo havia sido removido. Depois de tratamento adequado, passou a comportar-se como um zigoto recém-fertilizado e, posteriormente, foi implantado no útero de uma fêmea hospedeira, onde seguiu o curso normal até ao nascimento. Claro que esta técnica não é exclusiva, há outros meios.

A meu ver, um dos direitos violados com a clonagem reprodutiva humana é o da indiscriminação do próprio Homem, já que, sendo possível criar clones, apenas pessoas com certas características seriam aceites, o que poderia ter efeitos prejudiciais em termos de culturas, raças e biodiversidade. Além disso, se, como espécie sexuada, somos dotados de conceber outro ser único que resulta da individualidade de um óvulo e um espermatozoide, para quê abdicar disso para passarmos a “propagar” ao estilo de um microrganismo do tipo bactéria?

Na era da inteligibilidade contemporânea, a clonagem é ainda envolta numa nuvem de misticismo, muito em parte pela aceção errónea de que clonagem reprodutiva e terapêutica são sinónimos. Esta última, que é também designada por clonagem não-reprodutiva, visa o cultivo de tecidos e órgãos através da reprodução de stem-cells. Oferece, assim, um potencial significativo na medicina regenerativa, contornando a rejeição imunológica, e na cura de desordens genéticas quando usada em conjunto com a terapia génica. No contexto da terapia de substituição celular, possui interesse para a organogénese de novo e para o tratamento permanente de doenças, como Parkinson, distrofia muscular de Duchenne e diabetes mellitus, já demonstrado em estudos in vivo. Os obstáculos que impedem o avanço da clonagem terapêutica prendem-se com a tumorigenicidade, reprogramação epigenética, heteroplasmia mitocondrial, transferência entre espécies de patogénicos, baixa disponibilidade de óvulos. De referir também as considerações éticas relativas à origem, destruição e status moral dos embriões de fertilização in vitro.

A “interrupção” de embriões após obtenção das células estaminais pode frequentemente conduzir o tema a uma encruzilhada de fogo, uma vez que se eleva o argumento do uso egoísta de embriões utilitários. Mas a pergunta fica no ar: os benefícios que daí podem resultar (e que, de facto, resultam), não justificaria a sua utilização nesta nova era da Medicina?

Para um mesmo assunto, há de haver sempre um lado a favor e um contra. Parece-me importante regulamentar muito bem toda esta situação.

Para millenials que, como eu, cresceram a ouvir e a aprender sobre isto e, sobretudo, a encarar isto como o “futuro ao virar da esquina”, o termo clonagem pode não ser senão mais do que uma demonstração da evolução da ciência em todo o seu esplendor. Para os mais temerosos, trata-se de um virar de milénio com direção ao Apocalipse.

Não esquecer que o Homem é muito mais do que o produto dos seus genes, mas sim um ser social, cultural e biologicamente moldado ao longo dos tempos. Por isso, temos de nos concentrar num between que não subjugue os Direitos Humanos, brincando aos Deuses e Semideuses, mas que nos permita caminhar cientificamente para uma Medicina mais evoluída. Eticamente evoluída, remato.

Ana I. Sousa, 2º ano Mestrado Integrado em Medicina

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Investigadores na Coreia do Sul apanhados a referenciar jovens como coautores de artigos: Será ético?

De acordo com a notícia divulgada no volume 575 da Nature a 14 de novembro de 2019, foram identificados 82 artigos tendo jovens como coautores, jovens estes que frequentam o ensino básico ou secundário. Os investigadores fizeram isto para melhorar as hipóteses destes jovens de ganhar vagas na universidade.

A questão subjacente a esta situação é “Será esta atitude ética?”. Embora a ética seja um assunto muito pessoal e que pode variar de acordo com a pessoa que responde a esta pergunta; para entender completamente o problema, precisamos compreender a cultura sul-coreana, a motivação dos investigadores e os benefícios da sua atitude para os jovens envolvidos.

A Coreia do Sul é um dos países mais competitivos nas taxas de aceitação das universidades. Apesar de ter centenas de universidades, o acesso às melhores é muito difícil, sendo que a taxa de aceitação para estudantes coreanos pode ser de apenas 1% (e geralmente, esse privilégio é atribuído aos jovens com altas posições sociais), e com apenas cerca de dois terços dos alunos elegíveis a ter acesso ao ensino superior, a competição é ainda mais difícil.

Além das taxas de aceitação nas universidades, a cultura coreana é altamente focada na educação e nas notas escolares, tornando os exames coreanos uns dos mais difíceis do mundo. Reprovar ou mesmo ter nota abaixo de Bom não é uma opção, pois pode envergonhar toda a família (e até levar ao suicídio do jovem).

Tudo isto coloca uma enorme pressão nos estudantes coreanos, obrigando-os a fazer tudo o que podem para garantir que conseguem uma vaga na universidade, e se o jovem pertencer a um estatuto social elevado, a pressão é ainda maior. Os jovens coreanos quase não têm tempo livre, desde aulas a explicações e atividades extracurriculares que podem impulsionar a sua média e currículo, quase não há tempo para respirar fundo e apreciar a vida.

Compreender estas nuances sociais faz-nos olhar para a situação de um ângulo diferente.

Agora entendemos que houve boas intenções dos investigadores que referenciaram os jovens como coautores, uma vez que tudo o que eles estavam a tentar fazer era remover parte da pressão que a sociedade exerce sobre estes jovens desde a sua mais tenra idade; então sendo que estas ações foram feitas sem intenção de prejudicar, e se foram feitas como forma de reconhecimento do trabalho árduo dos jovens e por amor a elas, podemos censurar e culpar estas “pequenas mentiras”?

Na minha opinião, SIM, estas ações podem e devem ser censuradas e punidas. É uma mentira, que apesar das boas intenções, prejudica quem trabalha duro todos os dias para conquistar, por si, a tão almejada vaga numa universidade. É uma mentira que passa a mensagem de que a mentira é permitida e aceitável. É uma mentira que diminui a reputação dos investigadores e da ciência. É uma mentira que dá às pessoas um motivo para desacreditar a ciência e as evidências científicas, porque se um investigador mente sobre quem escreveu o artigo, sobre o que mais estará ele a mentir?

Esta ação, cujo único objetivo era remover parte da pressão sentida pelos jovens, abre um precedente para a falta de confiança nos investigadores e na ciência em geral.

A ciência já é um alvo para pessoas que não querem reconhecer alguns problemas. Pessoas que dedicam as suas vidas a contradizer e desacreditar as evidências científicas que não as favorecem. Desde sempre que os investigadores lutam para que os seus trabalhos sejam aceites por indivíduos que não os entendem e querem esconder ou disfarçar a verdade. Com ações como estas, a única coisa que se consegue é a desconfiança do público, pois são notícias altamente divulgadas e nas quais todos acreditam. Estas são as notícias que são lembradas e usadas como exemplo quando alguém tenta explicar por não se deve confiar na ciência. Notícias como esta são o princípio fundamental para a pergunta já mencionada – sobre o que mais mentem eles? Se eles precisam de mentir em assuntos tão insignificantes como os autores de um artigo, sobre que coisas importantes também mentem?

O problema existe e é muito claro, as crianças sul coreanas sofrem uma pressão que as priva de uma infância, mas esse problema não deve ser resolvido com mentiras. Esse problema precisa de ser abordado por uma mudança social, percebendo que a educação não é o fator mais importante da vida, e fazendo essa mudança de mentalidade, as ações tomadas pelos investigadores não acontecerão novamente.

É óbvio que mudar a mentalidade e a cultura de um país não é fácil ou agradável para as pessoas visadas, mas na minha opinião é necessário para uma infância mais saudável para as crianças e como forma de prevenir este tipo de ações, pois os investigadores representam toda a comunidade científica, e por isso as suas ações envolvem toda a sociedade, portanto as consequências não ficam na Coreia do Sul e não afetam apenas as crianças coreanas, as consequências são expandidas para todas as áreas científicas de todo o mundo. Ações como essa precisam ser pensadas e a comunidade científica deve agir para evitar que elas aconteçam.

Maria João Silva

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Manipulação genética: Perigo iminente ou condição necessária?

A genética proporciona-nos ferramentas extremamente importantes no âmbito da investigação de genes, que são a unidade fundamental da hereditariedade e que por sua vez, codificam proteínas imprescindíveis para o desenvolvimento humano. Embora os nossos carateres genotípicos (que se manifestam em carateres fenotípicos) sejam uma combinação do material genético dos nossos progenitores, a manipulação genética abrange um enorme leque de possibilidades que poderá representar a solução para certos problemas na comunidade científica assim como também poderá revelar ser uma ameaça à humanidade como a conhecemos.

A tecnologia do DNA recombinante começou a ser definida em 1970, onde se usaram enzimas de restrição que permitiram cortar o DNA em pontos bem definidos, isolando os fragmentos de interesse do mesmo, seguida da utilização de um vetor (contendo porções de ácido nucleico) para se formarem novas moléculas de DNA modificado. Com esta e outras descobertas relativas a este tema desenvolveram-se várias técnicas de aperfeiçoamento molecular, que consistiram, por exemplo, na produção alimentos geneticamente modificados (como a soja ou o milho), biocombustíveis e biorremediação. Apesar de todas as contribuições importantes, a manipulação genética não é amplamente aceite pela comunidade científica, devido às consequências que pode acartar.

De facto, podem ser levantadas várias questões éticas relativas a este tópico pela simples razão de constituir uma violação aos princípios básicos da bioética, desde a manipulação genética em humanos até à simples modificação do genoma de certos alimentos, que se ingeridos com uma certa regularidade poderão apresentar danos irreversíveis, como insuficiência hepática e renal.

No entanto, se a preocupação principal é a de estabelecer um limite ao conhecimento que podemos adquirir ou até um ajuste à moralidade da sociedade, contrabalançamos a necessidade de obter respostas aos problemas colocados pela ciência com a de manter a ingenuidade e estabilidade geral. Certamente, somos levados a pensar que a revolução tecnológica e científica poderá acarretar consequências muito graves e incorrigíveis para o ser humano, mas o que move o sujeito agente, ou seja, os nossos propósitos e objetivos é que são o grande problema a resolver, pois as nossas decisões e especulações relativas a uma certa temática é que são preponderantes no caminho que escolhemos levar. A título de exemplo, podemos basear-nos no cientista chinês, He Jiankui, que criou as primeiras bebés geneticamente modificadas com o objetivo de as tornar imunes ao HIV. Embora a manipulação genética em embriões humanos seja estritamente proibida, He Jiankui conduziu uma experiência que foi condenada e vorazmente criticada por violar um dos princípios básicos da ciência, mas até que ponto é que estes estudos serão considerados prejudiciais? E se conseguíssemos erradicar algumas doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, o Parkinson e o Huntington ou até compreender melhor o cancro, que hoje em dia tem sido cada vez mais recorrente… Por outro lado, até que ponto é aceitável alterar certas características físicas para satisfazer a vaidade de alguns?

Estas são algumas das perguntas que se podem colocar relativamente a este assunto e embora seja óbvio que o ser humano não se encontra preparado para lidar com estas questões e que os interesses individuais se poderão sobrepor ao bem comum, esta busca incessante para obter respostas é necessária para a evolução. No entanto, onde é que definimos uma fronteira entre a ética e a ciência sabendo que não vivemos numa sociedade perfeita e que cada povo possui valores inerentes à sua própria cultura? Na verdade, pode parecer-nos bastante notório que estas duas áreas do saber em concreto têm objetivos muito diferentes, mas para alguns a ciência sem a ética não é ciência.

Na minha opinião, a boa ciência assim como a boa ética são complementares uma da outra, embora possa haver erros cometidos em ambas se considerarmos o fator humano (as imperfeições da ética e da ciência estão no próprio Homem), ou seja, num mundo perfeito o cientista deveria ser um indivíduo consciente e lógico.

Concluindo, teríamos que analisar sucintamente cada caso para poder chegar a uma decisão justa e adequada à situação, pois se nos regêssemos somente pela ética provavelmente não teríamos evolução e por outro lado, se tentássemos obter todo o conhecimento do mundo possivelmente caminharíamos para uma sequência de eventos caótica.

Mara Baptista

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Negação Científica: Éticamente não ética

Nos dias que correm, movimentos anti-ciência vão ganhando cada vez mais visibilidade na sociedade ocidental. O número de seguidores tenderá a aumentar e esta tendência poderá ser baseada na falta de confiança e no descontentamento estabelecido perante evidências científicas previamente estabelecidas em detrimento de impressões e opiniões. O mediatismo e a divulgação de informação sensível por parte de indivíduos sem o mínimo de formação relevante em áreas científicas em redes sociais poderão ser os maiores inimigos da Ciência no século XXI.

Como bioquímicos, é natural associarmos a negação da ciência imediatamente com os movimentos de anti-vacinação. No entanto, não nos deixemos enganar. Se comparamos esta negação a um polvo, os seus tentáculos envolvem muitos outros movimentos, como as alterações climáticas, a defesa do criacionismo, a rejeição de relações causa-efeito (como a ligação entre o HIV e a SIDA), a evolução, Organismos Geneticamente Modificados, medicinas e terapias alternativas, numerologia e astrologia. Não, a lista não acaba aqui, mas tenhamos em mente de que o polvo é constituído por 8 tentáculos e não podia colocar em causa a analogia escolhida.

Não obstante, penso que algo está a falhar miseravelmente. Comissões de Ética foram criadas para que princípios básicos de dignidade e de idoneidade fossem respeitados durante o processo de investigação e para que se extraiam benefícios translacionáveis à comunidade de ideias bem-sucedidas. O avanço das tecnologias de comunicação permite o fácil acesso a este tipo de conteúdo, mas também a todo um universo de fundamentalismos e de fraudes que o cidadão comum não consegue discernir. Estas fraudes exploram dúvidas e aspetos negativos da ciência e os seus autores possuem a capacidade de as transformar em verdades absolutas que são seguidas e defendidas como se de um culto cego se tratasse. Deixa de fazer sentido questionarem-se e testarem-se hipóteses em detrimento de loucuras das quais nenhum benefício propositado resultará. Por isso, como espectador diário destas loucuras, pergunto-me: se a ciência lutou tanto para se afirmar perante mitos e crenças, regularizou-se, deu-se a conhecer e trouxe benefícios para a humanidade, como é que está a ser colocada novamente em segundo plano? Que papel poderão os investigadores desempenhar para a desacreditação de fraudes? Será que a saúde pública está a ser colocada em causa?

A negação da ciência é menos sobre ciência e mais sobre medos profundos e identidade pessoal e uma má interpretação de como a ciência funciona. E o mais assustador é que a anti-ciência é apresentada como uma ciência apesar de não o ser na sua essência. Se ainda existissem dúvidas, declaro aqui que não considero éticos todos os movimentos que se baseiam em mitos e crenças, que distorcem evidências científicas por claro conflito de interesse e que, acima de tudo, enganam quem não consegue perceber que está a ser enganado.

Citação da Edição:

“Organizámos uma sociedade com base na ciência e na tecnologia, na qual ninguém entende nada sobre ciência ou tecnologia. E esta mistura explosível de ignorância e poder, mais cedo ou mais tarde, vai explodir nas nossas caras. Quem gere a ciência e a tecnologia numa democracia de pessoas que não percebem nada sobre isso? (…) A ciência é mais do que um corpo de conhecimento, é um modo de pensar. Um modo de interrogação cética do universo com um baixo entendimento da capacidade de falha humana. Se nós não somos capazes de perguntar questões céticas, de interrogar os que nos dizem que algo é verdadeiro, de ser céticos das autoridades, então estamos preparados para aceitar o próximo charlatão, político ou religioso, que caminhe sozinho.”  – Carl Sagan

João Vieira

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Burnout

Um estudo recentemente apresentado pelo professor João Marôco do Instituto Superior de Psicologia Aplicada aponta que mais de metade dos estudantes do ensino superior em Portugal encontram-se em “burnout”, destacando-se os estudantes de ciências biológicas como os que mais frequentemente apresentam sintomas característicos desta condição. O termo “burnout” refere-se ao grau de exaustão (física e emocional) resultante de uma exposição prolongada a fatores stressantes, que muitas vezes conduzem a um desgaste geral incompatível com a continuidade das funções desempenhadas.

É fácil de perceber o porquê de os estudantes portugueses apresentarem níveis de desgaste tão elevados, uma vez que têm de balancear o seu horário letivo com a imensidão de trabalhos para apresentar, artigos para escrever, exames para estudar e restante vida pessoal, juntando a isto o facto de uma grande parte serem estudantes deslocados. O que eu não acho tão fácil de perceber é por que razão os estudantes, ou pelo menos eu em particular, se devem sentir culpados por tirarem algum tempo para si mesmos e fazerem o que gostam ou por dormirem pelo período de tempo recomendado para um estilo de vida saudável. Pois é esse o sentimento que eu tenho, como se não me pudesse dar ao luxo de parar para descansar ou desanuviar sem conseguir esquecer as tarefas todas por fazer a acumular.

O cansaço dos estudantes vai muito para além da incapacidade física, muitas vezes leva ao descrédito das suas capacidades, à baixa produtividade e ao questionar da sua posição no curso frequentado. Aliando isto à conjuntura sócio-económica de Portugal, que constantemente empurra os jovens qualificados para fora do país, acredito que os estudantes repensem na utilidade dos seus estudos, sendo também responsável por muitas das desistências dos percursos académicos.

Agora, enquanto estudante de mestrado, já não são só os finais de semestre que me fazem desesperar e já não é janeiro o mês mais temido, todas as semanas são críticas e todas as semanas há avaliações. E se por um lado a pressão funciona como combustível para a engrenagem, também nos consome e nos faz sentir incapazes.

Talvez seja importante reconsiderar a metodologia de ensino e avaliação nas universidades e politécnicos portugueses, para que funcione realmente como uma ferramenta de aprendizagem e aquisição de conhecimentos e não apenas como uma imposição de factos decorados.

Diana Santiago

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(BIO)Eticamente questionável

Se entre 2015 e 2017 festejávamos a deteção de ondas gravitacionais através dos estudos desenvolvidos pelos observatórios norte-americano, LIGO, e europeu, Virgo, provando que Albert Einstein estava correto quando propôs a Teoria Geral da Relatividade, em 1915; em 2010 questionávamos a árvore genealógica da humanidade através da análise de crânios fósseis completos, conduzindo à definição de uma nova espécie, o Homo luzonensis. Adicionalmente, na área da astronomia, nos últimos anos, soubemos mais sobre do espaço, muito graças ao telescópio espacial Kepler da NASA e ao seu sucessor TESS, que detetaram bastantes exoplanetas, planetas que orbitam uma estrela que não o nosso Sol.

Noutra área, com os progressos feitos na sequenciação de ácido desoxirribonucleico (ADN) um maior número de questões foi respondido: não só conseguimos sequenciar melhor o ADN como passámos a conseguir editar o mesmo. O livro que codifica a nossa vida parecia estar a ser descodificado de uma forma cada vez mais eficiente e rápida. E, para além da sua descodificação, parecia ser possível fazer a sua edição: adicionar, remover ou reparar! Em 2012, a CRISPR-CAS9 (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) revelou-se uma ferramenta poderosa de edição genética. Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna descreveram o desenvolvimento desta nova estratégia de edição genética. Aquando a pesquisa para este texto fiquei surpreendida por alguns autores defenderem que podemos dividir a área da biomedicina em duas eras: antes e após a CRISPR-CAS9.

Durante muito tempo acreditou-se que nenhum Cientista chegaria ao ponto de edição de genes em linhas germinativas, como espermatozoides, óvulos ou embriões. Mas aconteceu. Em 2018, o cientista He Jiankui anunciou que usou o CRISPR para editar um gene em duas meninas nascidas através de uma fertilização in vitro. Lulu e Nana são os dois primeiros humanos geneticamente modificados, contendo genes que foram modificados para serem imunes às infeções pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Este caso foi fortemente condenado pela comunidade científica por violar questões éticas. Muitas questões foram levantadas. Muito provavelmente, embora o gene alvo possa ter sido mutado, terão sido provocadas uma série de outras mutações indesejadas, os off-target effects, o fantasma que assombra esta tão poderosa ferramenta de edição. As desvantagens que ninguém gosta de falar.

Ainda na área da genética e reprodução, em 2016 assistimos ao nascimento de um bebé com 3 pais: esperma paterno, núcleo celular materno e o óvulo de uma terceira dadora. Esta terapia permite corrigir distúrbios nas mitocôndrias das mães. Esta técnica teve sucesso em macacos-rhesus. As mitocôndrias da mãe passam para os filhos através do citoplasma dos oócitos, logo, a alteração do citoplasma permite “trocar” o DNA mitocondrial defeituoso. Assim, transfere-se o núcleo do oócito da “mãe” (99% do ADN total da célula materna) para um oócito com citoplasma contendo mitocôndrias normais (doado sem núcleo). E o problema fica resolvido. A comunidade científica ainda está a refletir acerca desta estratégia. Contudo, em 2016 nasceu o primeiro bebé resultante da aplicação desta estratégia de reprodução medicinalmente assistida. Atualmente, mais crianças já nasceram com recurso a esta técnica. Há alguns países que já autorizaram a mesma, mas por exemplo os Estados Unidos proibiram a sua utilização argumentando que esta técnica se inclui no grupo de técnicas de edição genética “cujas modificações são transmissíveis às gerações seguintes”. Na realidade, neste caso, usar a expressão três progenitor revela-se sensacionalista, na medida em que a genética nuclear pertence apenas e somente aos pais biológicos, logo embora estejam três pessoas envolvidas no processo, apenas duas contribuem para a informação genética da descendência.

Já em 2018, a partir de células sanguíneas reprogramadas, foram criados precursores de espermatozóides e de óvulos humanos permitindo que dois ratos do mesmo sexo tivesses descendência. Ainda neste ano, cientistas chineses anunciaram o nascimento de dois macacos clonados que foram comparados à Dolly. Embora não sejam parentes próximos da Dolly por diversos motivos, e apesar de terem sobrevividos apenas poucas horas, esta foi a primeira vez que um macaco foi clonado a partir de células de um feto abortado (e não células adultas).

Poucos anos, muita evolução, mas muitas questões… Passo a passo, conhecimento a conhecimento, evolução em evolução, as respostas que dávamos às questões até então sem resposta abriam outra questão: a ética. Eticamente científico: o que é afinal o eticamente científico e até onde é que a ciência pode ir?

No dicionário, ética é definida como a parte da Filosofia que estuda os fundamentos da moral e o conjunto de regras de conduta de um indivíduo ou de um grupo. De origem grega – “ethos” significa costume ou comportamento, proposta por Aristóteles para a discussão de questões filosóficas. Mas quão rápida tem de ser a definição de condutas para garantir que acompanha a evolução científica?

As discussões éticas começaram com as células estaminais de embriões, pelo facto de se poderem usar células estaminais humanas para questões terapêuticas, crescimentos de células in vitro para o replacement de neurónios dopaminérgicos em pacientes com Parkinson ou células pancreáticas para o tratamento de diabetes. Diferentes questões foram levantadas, nomeadamente, sobre a destruição de embriões humanos para o conhecimento de doenças, sendo a maioria dos argumentos sobre a integridade e o respeito e dignidade da vida humana.

A cada evolução, uma nova questão (bio)ética se impõe. Terá a ética capacidade de acompanhar a evolução científica?

Uma coisa é certa, as questões éticas nunca cessarão.

Mariana Laranjo

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Ética limitante

O ser humano intelectualmente desenvolvido sempre se pautou por questões éticas, obviamente adaptáveis aos tempos e à cultura corrente. De acordo com a Wikipedia, conceptualmente, Ethos (em grego antigo: “hábito; costume”) é o conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o caráter ou a identidade de uma coletividade. Por outras palavras, creio que não estou errado ao afirmar que a Ética, numa comunidade, é um conjunto de regras sociais pelas quais ela se rege. Como se aplica a qualquer outra comunidade, isto é verdade também para a comunidade científica. Em bom rigor, Ética e Ciência, qualquer que seja o ramo, são duas disciplinas indissociáveis. No entanto, a pergunta para 1 milhão de dólares é: como traçar a linha entre o que é aceitável no processo de obtenção de conhecimento e o que não é, à luz das questões éticas?

Sou da opinião que o conhecimento é a causa mais nobre do mundo. Diz o povo que a ignorância é uma bênção, mas estou em profundo desacordo. Saber é sempre melhor que não saber. Se não fosse a Ciência e a sua incessante procura pelo conhecimento, a vida humana seria algo tão diferente daquilo que atualmente é que imaginar se torna um exercício inglório. Os problemas surgem quando a procura de conhecimento choca de frente com a Ética. Ora, o tema de capa desta edição da RNA Mensageiro surgiu na sequência de um desses choques, o famoso He Jiankui affair.

Jiankui é um biofísico chinês cuja Alma Materera, à data, a Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzhen. Muito sucintamente, através de uma técnica para edição de genética conhecida como CRISPR/Cas9, Jiankui introduziu em embriões fertilizados em laboratório uma mutação num gene, mutação essa que se crê que confere resistência inata ao vírus HIV, seguindo-se depois a gestação normal destes embriões. Importa dizer que os embriões eram de casais em que o homem era seropositivo e a mulher não, isto é, em que havia um risco grande da descendência do casal ser seropositiva. Obviamente, uma experiência deste género conduzida em humanos gerou amplas críticas na comunidade científica, sendo Jiankui apelidado de “Frankenstein chinês”. Além disso, estes atos valeram ainda o seu despedimento, uma pena de prisão de 3 anos, e uma multa de 3 milhões de Yuan (cerca de 400 mil euros). Mas analisemos este caso por partes.

À luz da legislação, não restam dúvidas. Estas atividades experimentais foram feitas de forma ilegal, envolvendo documentos forjados e um secretismo por razões óbvias. À luz das normas éticas em vigor, dúvidas também não as há. Efetuar experiências em humanos antes de se ter total certeza de que há efetivamente benefícios e de que os efeitos adversos roçam dentro dos possíveis o inócuo, como Jiankui fez, é indubitavelmente condenável, porque, de certa forma, é um rebaixar do valor da vida humana.

Por outro lado, à luz daquilo que é conhecimento público, avaliando as verdadeiras intenções do cientista, alguém é capaz de afirmar que este tinha más intenções? É que a técnica de CRISPR/Cas9 é já algo que vai começando a ser amplamente usado na comunidade científica (eu sou um dos muitos usuários), sendo portanto algo minimamente seguro unicamente no que à parte teórica diz respeito, e o que ele fez, por muito pouco ortodoxo que seja, foi oferecer uma solução para casais que se calhar pouca esperança tinham. Assim, urge perguntar: e se esta experiência for um sucesso? O resultado final serão pais super felizes, crianças que nascem sem um rótulo discriminatório enorme (na China, há um estigma social muito grande contra pessoas com HIV) e um avanço científico imensurável na área da biomedicina. Ou seja, se esta experiência for um sucesso, estamos perante um caso claríssimo em que a Ética, mais do que um guia, era um obstáculo ao desenvolvimento.

A minha opinião é de que estamos perante alguém que, vendo os factos de uma perspetiva diferente daquela que é amplamente aceite, agiu de acordo com as suas próprias noções éticas. É condenável? De acordo com as conceções vigentes, sem dúvida que é. De acordo com a ética pela qual Jiankui He se rege, parece que não. Na realidade, quem é que está certo, Jiankui ou a sociedade? Bem, isso fica para cada um refletir.

Em jeito de síntese, parece-me óbvio que a Ética será sempre um obstáculo para a Ciência e para o conhecimento no geral. E por muito polémica que possa ser a utilização da palavra “sempre”, relembro que a partir do momento que a sociedade no geral achar que algo é aceitável, mesmo que antes não o fosse, essa passa a ser a norma social vigente e, portanto, esse algo é algo ético. Dito isto, termino dizendo que a questão correta não é se a ética é um obstáculo para o conhecimento e a ciência, porque essa tem resposta fácil. A pergunta que se deve colocar é: quão limitante é a Ética, isto é, o que é que a sociedade perde por ser uma sociedade ética? Talvez os pros até sejam mais fortes que os cons. Contudo, eu diria que ao invés de se estabelecer julgamentos imediatos mediante a Ética em vigor, talvez fosse muito mais produtivo para o conhecimento e por inerência para a comunidade humana fazer esta pergunta sempre que algo eticamente questionável aparece. Bem sei que isto é demasiado teórico para sequer ser translacional, mas fica a dica para a sociedade.

Cláudio Costa

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Xenobots: uma nova forma de vida?

Xenobots são os primeiros “robôs vivos” recentemente desenvolvidos por investigadores da Universidade de Vermont e da Universidade Tufts, nos Estados Unidos. Estes robôs biodegradáveis, com menos de 1 mm de comprimento, foram construídos a partir de células estaminais do sapo Xenopus laevis e para além de se moverem e nadarem, são capazes de transportar pequenos objetos e apresentam capacidade de autorregeneração.

Os Xenobots foram desenvolvidos no âmbito do projeto “Computer-Designed Organisms” que visa recriar novas formas de vida funcionais, tendo sido criados milhares de designs in silico com recurso a um algoritmo evolutivo. Atribuindo uma tarefa, como a locomoção numa direção, o algoritmo testa os designs candidatos em ambiente virtual, simulando o comportamento das células da pele, responsáveis pela estabilidade da estrutura, e das células do músculo cardíaco, responsáveis pelo movimento. Neste algoritmo, as simulações com maior sucesso são mantidas e refinadas, enquanto que as que falham são eliminadas. Os designs finais mais promissores foram selecionados e recriados in vitro.

Células da pele, derivadas de células estaminais provenientes de embriões de Xenopus laevis, foram manualmente cortadas e moldadas de forma a criar uma aproximação biológica do design simulado. Posteriormente foi adicionado tecido contráctil, incorporando células precursoras cardíacas, também derivadas das células estaminais do sapo.

Os investigadores observaram que os designs produzidos se moviam coerente e cooperativamente. Uma das versões possuía um orifício que foi posteriormente adaptado para o transporte de pequenas partículas. Observaram também que ao danificarem os Xenobots, estes voltavam a adquirir a sua forma. As células possuem energia suficiente para sobreviver cerca de 7 dias. Depois disso, os robôs degradam-se naturalmente, como qualquer organismo vivo.

A possibilidade de desenhar os Xenobots de forma a terem características únicas significa que versões futuras dos robôs podem ser desenvolvidas para aplicações na biorremediação da poluição microplástica nos oceanos, para localizar e digerir materiais tóxicos, administrar medicamentos dentro do corpo humano, remover placas de gordura nas paredes das artérias, ou simplesmente para ajudar a ampliar a compreensão na área da biologia celular.

Os Xenobots são máquinas biológicas programáveis. As perspetivas futuras consistem em desenvolvê-los em grande escala e criar versões mais complexas, adicionando vasos sanguíneos, sistemas nervosos e células sensoriais, possibilitando, assim, a realização de tarefas mais elaboradas.

Apesar deste projeto ainda se encontrar numa fase inicial, algumas questões éticas começam a surgir, particularmente, tendo em conta que versões futuras podem vir a apresentar sistema nervoso. Por outro lado, existe uma crescente preocupação com as implicações das rápidas mudanças tecnológicas e manipulações biológicas complexas. No entanto, neste momento, estes organismos não são capazes de se reproduzir ou evoluir e apresentam durabilidade limitada.

Ana Jacinto

Queres saber mais?

  1. “A Scalable Pipeline for Creating Functional Novel Lifeforms (Xenobots)”. Computer-Designed Organisms, cdorgs.github.io/.
  2. Brown, Joshua E. “Team Builds the First Living Robots”. UVM Today, The University of Vermount, 13 Jan. 2020, www.uvm.edu/uvmnews/news/team-builds-first-living-robots.
  3. Kriegman, S., Blackiston, D., Levin, M., & Bongard, J. (2020). A scalable pipeline for designing reconfigurable organisms. Proceedings of the National Academy of Sciences.
  4. Sample, Ian. “Scientists Use Stem Cells from Frogs to Build First Living Robots”. The Guardian, Guardian News and Media, 13 Jan. 2020, http://www.theguardian.com/science/2020/jan/13/scientists-use-stem-cells-from-frogs-to-build-first-living-robots
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O incrível Randi

Randall James Hamilton Zwinge, conhecido como James Randi, nasceu em 1928 no Canadá, tendo-se naturalizado Americano. O seu percurso de vida foi e continua a ser, extraordinário, um exemplo de como a racionalidade pode de facto ser apreciada e valorizada.

Foi ilusionista, até aos 60 anos, actuando por todo o Mundo, mas em especial na América onde reuniu fãs e entusiastas devido à sua forma, bem pensada, de iludir os mais atentos. Realizou fugas de vários cofres e caixões, bem ao estilo de Houdini. Criou até um nome próprio, The Amazing Randi, para poder fazer jus aos truques de magia que proporcionava aos espectadores e tinha até uma presença assídua em programas de rádio e televisão Americanos tais como Long John Nebel, Wonderama e muitos, muitos mais1. Mais tarde, tornou-se um adepto aguerrido da racionalidade e ciência talvez devido à onda crescente de pseudociência e acontecimentos paranormais que invadiam os EUA nessa altura. Foi o co-fundador do Committee for Skeptical Inquiry2 (CSI), originalmente Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (CSICOP) com nomes como Paul Kurtz, B.F. Skinner, Philip J. Klass, Isaac Asimov e Carl Sagan! Tornou-se “investigador” dedicado a desmistificar quaisquer mitos e teorias da pseudociência, desde homeopatia, médiuns, psíquicos/videntes e todos os diferentes tipos de charlatães.

Talvez uma das suas aparições mais famosas seja a que em directo, no programa televisivo The Tonight Show Starring Johnny Carson em 1973 onde destruiu completamente o psíquico Uri Geller3 para deleite de qualquer adepto da ciência e verdade. Paradoxalmente, este feito teve o resultado oposto, tornando ainda mais famoso Uri e comprovando mais uma vez a frase: “É mais fácil enganar uma pessoa que convencê-la que foi enganada”. Era necessário mais trabalho e Randi não desistiu, continuou a desmitificar tudo e todos, numa corrida pela verdade e como dito pelo próprio, retirar poder a todas as pessoas que se aproveitam do sofrimento e debilidade psicológica das pessoas, e claro está das suas carteiras.

Fundou em 1996 a James Randi Educational Foundation4 (JREF) e com ela oferecia um cheque pessoal no valor de $1.000 a qualquer um que disse-se possuir poder sobrenaturais ou qualquer outra habilidade paranormal e que se sujeitasse a testes, acordados entre ambos, de modo a que se pudesse confirmar a sua habilidade. O prémio foi crescendo ao longo dos anos e atingiu o valor de 1 milhão de doláres!

Este prémio, One Million Dollar Paranormal Challenge continuou a ser disponibilizado sem que ninguém conseguisse sequer passar a primeira fase de testes. Surpreendente não?

O que mais impressiona neste senhor é a sua vitalidade, clareza de raciocínio e humor contundente que faz as delícias de qualquer amante da ciência.

Não acreditam? Vejam o documentário “An Honest Liar” de 2014, e comprovem por vós próprios…

 

Referências:

[1] – https://en.wikipedia.org/ wiki/James_Randi#Television_and_fi lm

[2] – https://www.csicop.org/

[3] – http://www.urigeller.com/

[4] – https://web.randi.org/

 

Rui Carvalho

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Fôlego – em defesa da tua ausência

Estará em algum lugar meu aquilo que perdi entre histórias que contava dos tempos em que estava mau tempo? – lembras-te de quando nevou? – em que era nosso o tempo que se curvava perante cada singularidade como se de nada se tratasse, como se cada casa fosse um templo e cada templo um tratamento para a sobriedade que a idade nos traz às costas – escala comigo um monte perde o teu tempo comigo – será que é andamento ou será que o meu tempo foi também a minha hora? Olha para trás e vês-me velho no Inverno da minha vida, olha para a frente e vês como a Primavera pode inaugurar o Outono sem que o Verão lhe brotasse das palmas das mãos – dá-me as mãos.

Sente-me a afundar no que resta de mim entre os colapsos do meu peito na terra por entre a humidade: eu vivo na interface da minha face com a superfície do mundo – entra em minha casa, descalça-te – sabias que me lembro de quando a brisa era uma criança e de a sentir como se fosse um membro fantasma e do meu quiasma com os quatro ventos lembrado outros pensamentos que já não são da tua geração – dizer que já não é do teu tempo ainda é do meu tempo? – e por vezes ainda sonho os sonhos que já não tenho porque os que eram são ainda parte de mim, talvez não inteiros nem por metade nem por partes nem por infinitesimais, só segmentos que me saciam a sede entre ofegações que me são oferecidas por pulmões cansados em jeito de prenda – já te disse que acho os teus trejeitos queridos? – às vezes tenho medo que o que eu digo te ofenda por isso é que a maior parte do que eu te digo fica por dizer – vem deitar-te comigo – será que é este o conforto que pretendes, será que disse algo que não devia, será que devia falar mais? – devia endireitar aquele quadro – mas ele está torto porque compõe o quarto e no canto entre a mesinha de cabeceira e a parede proclamações cerebrais fazem-se ouvir quando estou sozinho em casa que me dizem o que esperar quando não posso esperar nada e o que ter quando o que tive era o pouco que teimava em dar-te – amavas-me se eu vivesse da minha arte? – pergunto-me quanto ganharia se fizesse vida das tentativas ridículas de encontrar significado numa tela branca, branco, e de o ver a ter de me ter como se fosse submissiva a minha mão e encontra-se lar a quebrar o nulo com mates e brilhos – toma as minhas mãos.

Quero lembrar-me do tempo que temos juntos como um cachecol velho que alguém herda sem ninguém saber, porque a memória é circular e a herança é linear – achas que enquanto dormimos perdemos demasiado? – eu lembro-me de dormir bem e o que perdi é o mesmo que me faz dormir pouco – nada, não se passa nada, estou só a pensar – e eu sei que o muito perde-se entre suspiros meus e o que tenho para dizer fica sempre dito, não te preocupes, eu falo por silêncios para lhes dar força, em notação musical as pausas longas parecem compassos vazios porque é a falta de som que o compositor considera mas esquece-se da reverberação da sala e das tosses menos oportunas – não, eu estou bem, tenho apanhado frio.

Amanhã falamos.

 

José Guilherme Almeida

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Um admirável mundo novo para a Educação

Há 90 anos atrás, Aldous Huxley publicava um livro1 onde abordava o tópico da mudança no ensino, como que antecipando o que parece, agora, estar breve. Nele, o autor debruçava-se sobre tópicos como a democracia, inteligência individual e ensino. Não é espantoso que estes tópicos estivessem na ordem do dia, são por excelência tópicos importantes, com peso para a sociedade e com interessantes pontos de vista e cujos resultados são avaliáveis em menos de 20 anos. Mas a previsão de Huxley nada tinha de animadora.

É hábito haver um pendor nos discursos que oscila entre as (novas) tecnologias, ameaças de guerras nucleares (ou piores) e o fim do mundo sobre a forma de uma catástrofe natural à escolha, num estilo particularmente maquiavélico.

Dramatismos à parte, teremos de incluir nesta narrativa outra área com potencial para alterar ou se quiserem enfrentar o futuro, a Educação. Estamos a falar, teoricamente, de pelo menos 12 anos da vida de um indivíduo, que se espera “estar pronto” para fazer parte de um qualquer mercado de trabalho aos 18 anos, dois terços da sua vida no momento. Não é pouco.

O sistema de ensino já viu melhores dias, mas a questão é mais profunda do que parece ser à primeira vista. Teremos de talvez revolucionar o ensino ao invés de reformar. Teremos de pensar que cidadãos queremos formar para que estes se encontrem o melhor preparados para enfrentar o futuro, isto começa, claro está, nas crianças.

A era da tecnologia é inegável e com ela têm vindo a desaparecer os trabalhos técnicos desempenhados por humanos. A inteligência artificial está em rápido desenvolvimento e a equipa OpenAI2 do Elon Musk demonstrou isso há cerca de 6 meses atrás.

Todos os sectores da sociedade poderão ser afectados. Ao ritmo a que tudo tende a ficar automatizado a cada dia, não estará longe um futuro com fábricas, transportes e serviços totalmente desprovidos de humanos. Fala-se numa substituição de cerca de 800 milhões de empregos humanos por máquinas até 2030. Surgirão com eles novos empregos, mas longe dos empregos de outrora e é necessária uma adaptação por parte do ensino. O modelo actual, em praticamente todo o Mundo, é o mesmo criado quando surgiu a Industrialização e com o intuito de a satisfazer. Com o aparecimento de uma nova era, será fundamental adaptar ou reformular este sistema para as necessidades dos nossos dias. A escola de hoje em dia mata a criatividade das crianças3 mais tarde ou mais cedo. O sistema está montado para que o aluno funcione para o sistema e não o sistema para o aluno. Este é visto apenas como um recipiente para onde será vertido todo o conhecimento futuro.

Grande parte dos alunos acabam por fazer o seu percurso escolar e sentem que o que aprendem não tem utilidade e por isso o interesse pura e simplesmente não existe. Esta sensação continua muitas vezes pela vida adulta e não é invulgar encontrar pessoas, um pouco por toda a parte, que não gostam, nem se identificam com o que fazem, apenas aguentam o trabalho e esperam pelo fim de semana. Isto é um problema.

É urgente uma revolução no ensino que permita desenvolver a criatividade e adaptabilidade. Estas são apontadas pela maior parte dos directores executivos das maiores empresas como as “armas” a ter para aguentar um negócio num futuro incerto.

Se nos ensinam coisas que as máquinas brevemente farão melhor que nós, qual é então a “nossa” utilidade?

Posto isto, convém repensar o modo como devemos preparar os jovens, para que estes possam ser competitivos e fazer a diferença, num futuro onde as máquinas irão substituir os humanos em muitos trabalhos, em particular os trabalhos técnicos. Cabe-nos a todos, então, reflectir e descobrir onde nos conseguiremos inserir neste novo mundo.

Referências:

[1] – Huxley, Aldous. “Sobre a Democracia e outros estudos”. Edição Livros do Brasil. 1927.

[2] – https://www.blog.openai. com/dota-2/

[3] – https://www.ted.com/tal ks/ken_robinson_says_schools_kill_ creativity#t-346285

 

Rui Carvalho

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Portugal e a Ciência: De onde veio, como está, para onde vai

A ciência tem ganho em Portugal cada vez mais adeptos, isto reflete-se não só no aumento exponencial da comunidade científica Portuguesa mas também na sociedade em geral que olha a ciência de forma curiosa e interessada. Esta situação, bastante positiva em termos absolutos está, no entanto, envolta em todo um contexto menos simples, o que faz surgir várias perguntas, nomeadamente, quais são as causas deste aumento, qual a atual situação da comunidade científica, as suas perspetivas e o que Portugal lucrou e pode ainda vir a lucrar com o mesmo.

Na atualidade, a ciência aparece bastante disseminada pela sociedade, isto deve-se sobretudo ao valoroso (também por vezes mediático e inverosímil) papel dos media, aos esforços da própria comunidade científica em informar de forma mais eficaz a população e a um aumento socialmente transversal da formação académica da população. Assim, seja pela disseminação de informação, pelo gosto do conhecimento baseado em verdades empíricas ou ainda pelo simples aumento da população universitária, cada vez mais gente opta por se formar na área das ciências e se tornar membro de uma comunidade científica bastante prezada a nível Europeu.

No entanto, embora Portugal esteja em termos de publicações científicas per capita à frente de países como a França e a Alemanha, a sua comunidade científica encontra-se a braços com uma grande precariedade. Qual a razão da mesma? Como na atualidade a ciência é realizada sobretudo à sombra de organismos estatais (universidades públicas) a falta de investimento governamental e os sucessivos cortes levaram à existência de um superavit de mão de obra qualificada, o que conduz em última instância à dramática “fuga de cérebros”. Daqui destaca-se ainda uma outra situação infeliz e que os inexperientes novos cientistas estão a sofrer na primeira fila: o uso da lei da oferta e da procura contra eles. Como diz a antiga lei, quando a oferta supera a procura, a procura tende a fazer exigências neste caso a proclamar salários baixos, negação de assistência social e banalização dos direitos laborais. Apesar das novas gerações serem as mais afetadas, toda a comunidade científica acaba por ser prejudicada, não só pelo sobrecarregamento a que ficam sujeitos os seus membros mais antigos, mas também pela desensaboria que é saber que vários lusitanos patrocinam grandes descobertas noutros países com outras comunidades científicas, quando poderiam patrociná-las cá.

Contudo, esta situação não é diferente de outros países (vários estão a braços com cortes), o grande problema aqui é cultural… A denominada “crise económica Portuguesa” é uma sina que vai fazer no próximo ano da graça de 2043 uns exatos 900 anos, e tem sido usada como justificação para alguma ociosidade ou pouca vontade de investir em novos caminhos ou soluções. Não se quer com isto dizer que realmente não haja uma situação económica pouco favorável ou que não tenha já havido tentativas falhadas de empreendimento. No entanto essas tentativas falhadas são também resultado de uma legislação pouco eficaz e acima de tudo de ser uma comunidade recente e pouco instruída nos ideais do “bioempreendorismo”. Ao se dizer que é uma comunidade recente é preciso perceber que apesar de se fazer ciência em Portugal desde antes dos Descobrimentos, a mesma sempre esteve sujeita a grandes imposições e a pouca margem de manobra, tendo este paradigma unicamente sido superado nos últimos 30 anos, a partir do frutífero trabalho de José Mariano Gago e da sua equipa, que dotaram Portugal das infraestruturas e docentes necessários à formação desta atual comunidade. Desta forma é urgente que a comunidade científica como um todo se debruce sobre o empreendorismo como uma forma viável de solucionar o drama da precariedade das camadas mais jovens, ao invés de se requerer do Estado mais condições ou emprego deve-se, portanto, requerer alterações legislativas e incentivos estatais eficazes à construção de novos  negócios na área da ciência, com vista a fazer a passagem de uma produção científica predominantemente nas mãos públicas para uma associação de privados, tendo como exemplo de sucesso o tão próximo BIOCANT em Cantanhede fruto da obstinação, vontade de mudança e capacidade empreendedora de membros da nossa comunidade que projetaram um pólo científico com visão a longo prazo.

Portugal, com base na sua comunidade científica, tem tido uma boa projeção a nível internacional, seja pela peculiar forma de trabalhar à Portuguesa (arte do desenrascanço) que se traduz em resultados positivos, seja pelas várias publicações científicas efetuadas, além disso, a existência de uma comunidade científica capaz e dinâmica tem sido fulcral para lidar e resolver assuntos referentes ao ordenamento do território e da ação administrativa sem a necessidade de se recorrer a estrangeiros. Uma boa forma de melhorar esse mesmo contributo passa assim pelo governo atrair investidores estrangeiros para os potenciais novos negócios na área das ciências que possam vir a surgir, apostar nas áreas científicas que conduzam a resultados mais lucrativos a longo prazo como é o caso da bioinformática e dos assuntos do mar (novo desígnio nacional atualmente em expansão), construir e manter as infraestruturas necessárias ao aparecimento de novos pólos científicos e promover os mesmos de forma a criar mais emprego e por isso maior fonte de rendimentos estatais.

 

João Castanheira

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A decadência da Ciência americana

No dia 8 de novembro de 2016, realizaram-se as eleições para eleger o 54º Presidente dos Estados Unidos da América. Num resultado pouco, ou muito, esperado elegeu-se Donald J. Trump, do Partido Republicano, com 55.7% dos votos, derrotando-se assim Hillary Clinton, candidata do Partido Democrata. O candidato eleito tomou posse como novo líder do governo americano no dia 20 de janeiro de 2017.

Desde o primeiro dia à frente da Casa Branca, Trump tem-se mostrado pouco ou nada preocupado com questões que não estejam diretamente relacionadas com a esfera económica do país, tendo mesmo tomado medidas, pouco razoáveis em relação aos serviços de saúde, imigração, educação, apoio à ciência e tecnologia, e preocupação com o meio ambiente.

Em relação à (des)proteção do ambiente, uma das principais medidas que põem em causa a já frágil estabilidade das condições climáticas mundiais, foi a nomeação de Scott Pruit, um conhecido oponente de Barack Obama nas políticas ambientais, para liderar a Environment Protection Agency (EPA). Esta nomeação permitiu assim o apoio, em grande escala, de medidas, comprovadamente prejudiciais ao ambiente. Entre estas conta-se o abandono pelos EUA do Acordo de Paris, assinado por mais de 190 países em 2015 e que limitava a emissão de gases poluentes para a atmosfera. Também a cedência de um maior número de terrenos para exploração petrolífera e mineração em território americano, levou à denigração do património histórico e cultural dos nativos norte-americanos, o que mostra a clara tendência de apoio de Trump para com a indústria petrolífera e de carvão. Um outro exemplo de políticas de não-proteção do meio ambiente, é a destruição do património americano após a abertura do Alaska’s Artic National Wildlife Refugee para exploração petrolífera. O corte de financiamento de programas de proteção ambiental e a desregulação da quantificação de emissões em centrais produtoras de energia são mais tantos exemplos das políticas adoptadas pela administração Trump.

Na saúde, deu-se a tentativa de exclusão do Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare, quase imediatamente após a entrada do novo presidente na Casa Branca. Não tendo conseguido que esta proposta fosse aceite, em outubro de 2017, foi aprovada uma lei que restringia os subsídios de apoio a indivíduos com baixos rendimentos na prestação de serviços de saúde, levando a que um subsidiário tenha de, para um mesmo serviço de saúde, pagar uma maior quantia. Devido à enorme privatização dos serviços de saúde nos EUA, muitos indivíduos terão uma maior dificuldade no pagamento dos serviços que necessitam.

No mundo tecnológico, Ajit Pai foi nomeado como chairman da Federal Communications Comission (FCC). Em dezembro, esta comissão votou a favor do abandono da política de Net Neutrality, permitindo aos serviços fornecedores de Internet bloquear ou diminuir a velocidade de alguns sites, consoante os planos de internet escolhidos pelos clientes.

No campo do ensino tentou-se aprovar uma lei que removia os subsídios do estado às instituições universitárias americanas, tornando apenas possível para os mais abastados frequentar o ensino superior. Esta lei não foi aprovada, no entanto verificou-se o aumento dos custos de acesso ao ensino superior.

Na ciência, a administração Trump limitou a entrada e dificultou, grandemente, a estadia de pessoas provenientes de oito países do Médio Oriente, sendo seis deles países muçulmanos, levando a que cientistas desses mesmos países tenham uma maior dificuldade em comparecer em conferências ou participar em pesquisas nos EUA. Ainda, o Deferred Action for Childood Arrivals (DACA), programa que permitia a jovens, que viajaram ilegalmente para os EUA em criança, de permanecer no país e, que neste momento protegia quase um milhão de jovens de serem deportados, está em risco de ser desactivado. Muitos destes jovens são hoje estudantes nas mais diversas áreas.

Após um ano na liderança da Casa Branca, a administração Trump tem-se mostrado pouco, ou nada, preocupada com assuntos que não estejam diretamente ligados à esfera económica dos EUA. O boost na economia americana verificado no último ano provém, com certeza, das novas medidas económicas, mas também das que já estavam a ser implementadas por antigos líderes americanos. Como centro multicultural os EUA apresentam uma enorme capacidade de produção de novas tecnologias, tendo centros científicos e tecnológicos extremamente mais avançados que em Portugal, e em muitos locais da Europa, centros esses que foram formados através de um enorme investimento na investigação e na ciência em geral.

Mas não é só de contas que se faz um país!

As recentes políticas de “desapoio” aos mais pobres, o fecho das fronteiras para indivíduos provenientes de outros grandes centros tecnológicos mundiais, a dificultação do acesso ao conhecimento, e a destruição do património (que sempre foi defendido, ferozmente por qualquer americano) irão levar os EUA, a passos largos, a uma leva de emigração que resultará numa fuga de cérebros do país. Talvez possa ser comparável com a fuga de cérebros que ocorreu na Alemanha Nazi em meados do século XX e que levou grandes cientistas a emigrarem para os EUA. A história repete-se assim apenas por motivos diferentes. Mas, se durante o século XX, ocorreu um enorme crescimento económico nos EUA, foi em parte pelo uso adequado dos recursos científicos na criação de novas tecnologias com aplicação industrial, no avanço da medicina e ciência em geral. Estas novas tecnologias foram desenvolvidas com o apoio de imigrantes que tinham grande dificuldade em exercer as suas funções nos países de origem.

Políticas de valorização económica, por si só, permitem que, a curto prazo, se verifique um crescimento rápido, no entanto não é apenas de economia que um país vive.

Na Europa, conhecida por ser mais recetiva à multiculturalidade e ao desenvolvimento científico, já se começa a receber cientistas provenientes dos Estados Unidos que viram as suas pesquisas canceladas ou sem apoio. Após a ameaça de saída do Acordo de Paris pelos EUA, Emmanuel Macron, atual Presidente francês, emitiu um comunicado afirmando que os cientistas ambientais poderiam realizar as suas pesquisas em França tendo assim um maior acesso a apoios que nos EUA. Este tipo de medidas serão cada vez mais comuns na Europa, e provavelmente noutros grandes centros mundiais, levando ao afastamento do conhecimento dum centro, que outrora fora efervescente em ciência e tecnologia.

Talvez a administração Trump tenha um jogada na manga para combater este novo problema por eles criado, no entanto e mesmo que tenha, esta irá demorar bastante tempo a ser implementada, e entretanto, a fuga irá continuar.

 

Guilherme Frias

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A idade do tempo

Estima-se que o Universo tenha cerca de 13,7 bilhões de anos. Estima-se que o planeta Terra tenha 4,5 bilhões de anos, que a vida surgira há cerca de 3 bilhões, e que os primeiros representantes do homem moderno tenham aparecido há sensivelmente 200 mil anos. A esta escala, quanto tempo duramos?

Diria que cada um de nós tem direito a apenas uma ínfima fração de segundo da História do Universo. Estamos cá (pelo menos materialmente) muito pouco tempo. Para uma qualquer estrela de uma qualquer galáxia de uma qualquer parte do infinito, o tempo que temos não chega a ser suficiente para que ela perceba sequer que existimos (e isto, claro, partindo do pressuposto que as estrelas entendem noções como a do tempo, e que estão minimamente importadas connosco…o que, sinceramente, duvido). Basicamente, a nossa vida é efémera, e essa efemeridade agrava-se quando analisamos a cronologia desde o início dos tempos. Temos o tempo contado e ele parece-nos muito pouco, principalmente se quisermos fazer a diferença. Sim, porque fazer a diferença não exige só trabalho, também exige tempo. Mas o que é, realmente, fazer a diferença? Sempre me preocupei muito com isso. Confesso que o conceito de finitude e de esquecimento nunca me foram muito aprazíveis. Sempre admirei “aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” e sempre estive convicta que ser um deles é um bom objetivo. E é. Mas, se há algo de realmente incrível e surpreendente neste acaso científico ou neste plano calculosamente premeditado por algo ou alguém misterioso, é a capacidade de certas coisas para moldar as nossas conceções, permitindo-nos o real conhecimento dos nossos desejos. Gosto de pensar na beleza quântica, atómica, molecular e infinita que permite a existência de algo como o amor. E é quando fecho os olhos e penso nessa melodia jorrante de emoções que entendo o que pode significar fazer a diferença. E é nisso que o amor me muda um bocadinho: na sensação de me libertar da “lei da morte” por apenas amar. Mas calma, porque isto não deixa de ser algo desconcertante. Não é assim tão fácil aceitar que afinal poderá não ser preciso mudar o mundo inteiro para achar que a vida vale a pena e que se fez a diferença. Talvez o nosso mundo se concentre em alguém muito especial que apenas precisamos de ver sorrir para nos sentirmos os maiores sortudos do Cosmos, sem que isso faça de nós menos decididos ou ambiciosos. Porque não faz, apenas nos complementa.

Talvez as coisas mais belas sejam aquelas que não têm idade, aquelas que nascem sem se perceber bem como e que parecem nunca acabar. Essas coisas, não mensuráveis, estão muito além da escala do tempo, mas são as responsáveis pelo sentimento de que o tempo vale a pena. Podem pensar que este texto é apenas uma tentativa de me sentir menos impotente perante a grandeza do tempo. Podem pensar que não passa de um mero desabafo, completamente sem sentido. E eu posso pensar que, com o tempo, me vou arrepender de ter escrito estas palavras. Mas, por agora e durante o tempo que me for permitido, simplesmente desejo ter tempo suficiente para apreciar as coisas que não têm idade, para que, além dos tempos e no coração de alguém, consiga ser eterna…

 

Daniela Rosa

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O estado da arte da Ciência em Portugal: a evolução na instabilidade

Refletir acerca do estado de arte da ciência em Portugal leva-me inevitavelmente a uma retrospetiva, na tentativa de perceber se esta evoluiu nos últimos anos ou se, por outro lado, estagnou. Esta questão é-me particularmente pertinente, na medida em que iniciei há pouco tempo a minha tese de mestrado e, como novata no mundo da investigação, tenho-me interrogado acerca da ciência em Portugal. Neste texto, pretendo responder à questão “Qual o estado da arte da ciência em Portugal”, pelo que tentarei abordar alguns dos aspetos revelantes do panorama científico do nosso país, tais como: como está a ciência; como é a vida de um cientista em Portugal; a formação científica; as consequências do excesso de informação diária; e como podemos, enquanto cientistas, promover a ciência. Na base dos meus argumentos estarão a minha – ainda pouca – experiência no terreno e alguns artigos que tenho lido acerca destes temas.

Para começar, considero ser bastante útil e pertinente recorrer a uma entrevista do Jornal Público, de 9 de novembro de 2017, na qual o físico Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal discutem o estado da ciência em Portugal. Nesta entrevista, Carlos Fiolhais afirma que nos últimos 20-30 anos a ciência em Portugal experienciou o seu “Big Bang” devido ao aumento do dinheiro investido em ciência, cujo montante duplicou nas últimas duas décadas. Contudo, o mesmo afirma que este investimento está ainda muito aquém do desejável.

Na minha opinião, o dinheiro aplicado na ciência deve ser entendido como um investimento na formação e na cultura, permitindo a valorização e o crescimento do país. De acordo com o orçamento de estado de 2018, haverá um aumento no investimento na fundação para a

ciência e tecnologia. Este investimento deverá traduzir-se de diferentes formas, nomeadamente na abertura de um concurso para doutorados, que pela primeira vez oferece contratos de trabalho em vez de bolsas. Esta medida surge de forma a “combater” o elevado número de doutorados em Portugal nos últimos anos. Anualmente, graduam-se cerca de 500-600 doutorados em Portugal, sendo esta uma consequência do investimento na ciência e da abertura de bolsas de projeto de doutoramento. Desta forma, a abertura de contracto para doutorados pretende reforçar o emprego científico e promover as atividades científicas e tecnológicas.

Paralelamente, o número de publicações científicas em revistas internacionais aumentou. Quando comparada com outros países europeus onde o orçamento para a ciência e tecnologia. Este investimento deverá traduzir-se de diferentes formas, nomeadamente na abertura de um concurso para doutorados, que pela primeira vez oferece contratos de trabalho em vez de bolsas. Esta medida surge de forma a “combater” o elevado número de doutorados em Portugal nos últimos anos. Anualmente, graduam-se cerca de 500-600 doutorados em Portugal, sendo esta uma consequência do investimento na ciência e da abertura de bolsas de projeto de doutoramento. Desta forma, a abertura de contracto para doutorados pretende reforçar o emprego científico e promover as atividades científicas e tecnológicas.

Paralelamente, o número de publicações científicas em revistas internacionais aumentou. Quando comparada com outros países europeus onde o orçamento para a ciência é substancialmente mais generoso, a produção científica portuguesa por investigador e por euro investido é bastante elevada. Na realidade, Portugal é o 11º país europeu com maior número de publicações científicas por habitante, ultrapassando a Espanha, Alemanha, Inglaterra e Itália. Nos últimos anos, o crescimento da produção científica em Portugal teve altos e baixos: entre 2005 e 2010 era 69%, descendo para 50% entre 2010 e 2015. Atualmente, a tendência é de aumentar novamente.

Devido ao aumento do número de doutorados, cada vez mais, se discute a carreira profissional dos mesmos e quais as suas expectativas de futuro. Na minha opinião, a carreira profissional após um doutoramento pode ramificar-se em diferentes vertentes: pós-doutoramento, técnico laboratorial, comunicação de ciência, entrada em empresas, entre outras opções. Penso que, essencialmente, a decisão deve passar por cada um, tentando perceber o percurso que tente fazer.

Em alternativa à carreira académica, os doutorados escolhem ingressar cada vez mais em empresas, na tentativa de uma vida profissional mais estável. Contudo, a inserção de doutorados em empresas continua ainda a ser um desafio. Em Portugal estima-se que apenas cerca de 4% dos doutorados estão a trabalham no sector privado. Esta é uma das percentagens mais baixas da união europeia. Por exemplo, na Dinamarca, cerca de 38% dos doutorados estão integrados em empresas. Em Portugal, a baixa percentagem poderá ser uma consequência da existência, maioritariamente, de micro e pequenas empresas, que não tem rentabilidade suficiente que justifique a inserção de doutorados. Considero que a entrada destes profissionais qualificados numa empresa permite a valorização e a modernização tecnologia da mesma.

Por outro lado, verifica-se que alguns doutorados optam pela criação de empresas próprias ou startups que permitem a aplicação da investigação efetuada e do conhecimento adquirido. Exemplos de locais que acolhem estas startups são o Biocant e o Instituto Pedro Nunes. Em suma, considero que um doutoramento não deve ser entendido com um fim ou um fechar de uma porta, mas sim como uma valorização profissional que permite a abertura de diferentes janelas que podem ser preenchidas de acordo com os objetivos pessoais.

Há outra questão que considero bastante pertinente de abordar. A ciência é refém do conhecimento, das relações causa-efeito e da existência de provas que fundamentam a teoria. Contudo, fruto da imensidão de informação com que somos confrontados todos os dias – muitas vezes contraditória – e devido à falta de cultura científica na população em geral, há cada vez mais difusão de ideias erradas e a criação de movimentos perigosos que sustentam a sua existência em factos (pouco) científicos. Por exemplo, os movimentos contra a vacinação ganham cada vez mais visibilidade, a homeopatia tem cada vez mais defensores, e há a propagação de ideias erradas em várias áreas, como dietética e no desporto. Estas ideias e movimentos são normalmente criados e alimentados nas redes sociais, recorrendo a termos científicos, na tentativa de se aproximar à ciência, e com expressões complexas e poucas claras. Alimentando-se da falta de cultura científica para se difundirem. Há quem as defina como pseudociências.

Para combater alguns destes movimentos, considero que a divulgação de ciência é bastante importante. A comunicação de ciência poderá ter um papel fulcral na evolução da ciência e na harmonização da relação entre o cientista e a sociedade em geral. Desta forma, o trabalho do cientista é – ou, pelo menos para mim, deve ser – tentar transmitir o seu trabalho à sociedade, na medida em que esta transmissão de informação permite a valorização da mesma. Esta transmissão pode ser feita através de eventos em museus, dias abertos nas faculdades, feiras de ciência, entre outras opções. Consequentemente, a aproximação à sociedade torna-a mais sensível em relação às questões abordadas pelos cientistas. Assim, o investimento na ciência é mais facilmente justificável e a sociedade fica mais suscetível à necessidade de apoio e de investimento na ciência.

Para além do papel do cientista em difundir a ciência, os meios de comunicação social têm igualmente um papel importante, através da transmissão de notícias de ciência de uma forma correta e plausível. Isto é possível se os meios de comunicação social apostarem em sessões específicas de ciência, com pessoas especializadas na comunicação de ciência, o que permitirá a difusão correta da mesma.

Em suma, podemos concluir que o caminho ainda é longo… Na minha opinião, a consciencialização do valor da ciência para o estabelecimento de uma sociedade mais equilibrada e justa permitirá a evolução da ciência em Portugal através de um maior investimento na mesma. Agora, deixo-vos com uma questão: estamos juntos nisto? Vamos lutar pelo crescimento da ciência?

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Teremos que parar de vacinar a população?

Vivemos num mundo onde, curiosamente, o rápido acesso à informação parece estar a complicar a comunicação da ciência, bem como a sua credibilidade e interpretação. Neste artigo vamos tentar entender algumas das razões.

Procurando ser objetivos, a maioria dos leitores ao ler o título deste texto formularam imediatamente uma ideia sobre o que iria ser o tema central deste artigo. Igualmente, tantos outros, se deparados com este título numa rede social, criariam desde logo uma opinião vincada sobre o texto sem, na maioria das vezes, chegarem a ler o conteúdo para encontrar os argumentos e a lógica que justificariam a opinião do autor. Este tipo de precipitação é extremamente nocivo, ainda que, em parte, compreensível.

A escassez de tempo inerente ao estilo de vida presente, leva a que a leitura integral das notícias venha a ser substituída por ‘shots’ baseados num título mais um pequeno resumo. Este fato, quando acoplado à tendência para a escrita de títulos sensacionalistas, que recorrentemente dão uma ideia completamente errada do tema da notícia, levam à criação de ‘fatos’ errados na mente daqueles que as lêem.

Não devemos cair no erro de menosprezar os primeiros contactos do público alvo com informação menos credível. Certos vieses cognitivos já extensamente estudados como o chamado “efeito de influência continuado”[1] tornam evidente a necessidade da existência de um revisor científico nos órgãos de comunicação social.

Neste ponto do texto, o leitor poder-se-á perguntar onde está a parte relacionada com as vacinas… existe, mas não como tinha percecionado! Admito, é um truque do autor. O título deveria servir essencialmente de sumário para o texto subjacente, mas este é um ‘erro’ que é (ab)usado frequentemente pela comunicação social, quer para aumentar as vendas ou devida a agendas pré-estabelecidas. O famoso click-bait, como é chamado, aproveita-se do subconsciente do leitor, levando-o à ‘necessidade’ de ler o artigo. A questão que se põe é: estará isto certo do ponto de vista ético, quando o escritor deveria ser objetivo e isento? Eu diria que não, mas de fato isto mostra a eficácia da estratégia.

Estes problemas parecem estar a afetar a eficiente transmissão de informação nos nossos dias, mas seria egocêntrico e incorreto da nossa parte atribuir todo o problema ao leitor e/ou ao meio de divulgação.

Quando nos focamos na ciência, o alvo de crítica costuma ser o investigador e a sua incapacidade em comunicar eficazmente. É um fato que a comunidade científica tem problemas no modo como comunica para o público geral, e os esforços recentes mostram a aceitação disso mesmo, bem como uma marcada vontade de mudar, com o surgimento de cursos de comunicação de ciência e a sua inclusão em diversos planos curriculares.

Mas os problemas não se resumem apenas à capacidade de comunicar. Na verdade, a meu ver, o maior entrave reside numa das características que nos deveria definir: a objetividade, ou, neste caso, a sua falta. A credibilidade naquilo que produzimos é fulcral para a nossa imagem pública e aceitação, mas os ocasionais ‘escândalos’ de criação ou alteração de resultados mancham toda a comunidade a longo prazo. Esta falta de credibilidade leva a que evidências e dados concretos sejam ignorados pelo público e as opiniões de especialistas da área não sejam acolhidas com a devida atenção. Para além disso, a falha num princípio tão básico daquilo que fazemos cria oportunidade para a criação de muitas minorias que, baseando-se apenas num ‘investigador’ ou, simplesmente num artigo (possivelmente retraído) defendem vivamente as suas opiniões, por muita evidência substancial que exista em contrário.

É então, na minha opinião, necessário manter o foco e suplementar a nossa mudança/melhoramento, como comunidade científica, com um plano de vacinação da população (afinal sempre há o tema “vacinas” neste texto) para a proteger de informação deturpada e a preparar para melhor receber informação fidedigna, se possível estimulando a reflexão crítica sobre a informação que recebem.

Assim, tendo em consideração o panorama atual, as necessidades são claras: temos que manter o enfoque, na melhoria da forma e do conteúdo da comunicação científica, na promoção da reflexão crítica (individual e coletiva), na melhoria da nossa credibilidade científica e acima de tudo, numa altura em que o cidadão comum demonstra um interesse crescente pelas áreas da ciência e tecnologia, devemos aproveitar este entusiasmo para fazer chegar da melhor forma estado da nossa arte.

[1] Tendência para acreditar em informação errada, e a sua capacidade para afetar inferências, mesmo depois de a mesma ter sido corrigida

 

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Técnica de Modulação Eletrónica permite controlar a Diabetes Tipo 2

Os corpos carotídeos são quimiorecetores arteriais sensíveis a alterações dos níveis arteriais de oxigénio, dióxido de carbono e pH localizados na bifurcação da artéria carótida. Através do nervo seio carotídeo, o sistema nervoso simpático é ativado para regular a pressão sanguínea e a atividade cardíaca. Deste modo, quando há uma diminuição da quantidade de oxigénio no sangue, por exemplo quando se sobe a uma montanha de elevada altitude, o corpo carotídeo é ativado levando a um aumento da frequência respiratória para repor a quantidade de oxigénio no sangue.

Muito recentemente, uma equipa de investigadores liderada por Sílvia Conde do Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, demonstrou que o corpo carotídeo é também um sensor metabólico, responsável por várias funções fisiológicas, nomeadamente o controlo da forma como o nosso corpo responde à insulina. Em modelos animais com diabetes do tipo 2, a abolição da atividade do corpo carotídeo através da excisão cirúrgica do nervo seio carotídeo permite a restauração da sensibilidade à insulina e tolerância à glucose. Adicionalmente, verificaram que nos mesmos animais, o corpo carotídeo está mais ativado em comparação com animais controlo.

Este procedimento experimental tem efeitos colaterais, visto que o corpo carotídeo desempenha outras funções no nosso organismo. Desta forma, a equipa de investigadores tentou desenhar uma solução alternativa para a modulação do mesmo.

A medicina bioeletrónica tem vindo a emergir como uma potencial terapia alternativa, permitindo a deteção precisa e a modulação de padrões de sinalização no sistema nervoso periférico através de da implantação de um elétrodos  que permite intervir no nervo do seio carotídeo. Neste caso, os animais foram implantados com elétrodos no nervo do seio carotídeo dos animais, o que permitiu a modulação elétrica do mesmo. Consequentemente, há o controlo glicémico através de um processo reversível, sem os efeitos adversos da abolição total da atividade do órgão. Uma vez que as terapias disponíveis para as doenças metabólicas, como o caso da Diabetes do tipo 2, não promovem um controlo a longo prazo, esta abordagem aparenta ser uma boa solução. De facto, a medicina bioeletrónica é pouco invasiva e não interfere com o dia-a-dia dos pacientes.

Deste modo, os autores deste estudo demonstraram que com a modulação do nervo seio carotídeo recorrendo à medicina bioelétrica é possível controlar os níveis glicémicos e que o processo é reversível, sem qualquer efeito adverso. Estes estudos permitiram, assim, abrir portas para uma potencial terapia da Diabetes do tipo 2, bem como outras doenças metabólicas.

Referência:

https://link.springer.com/article/10. 1007%2Fs00125-017-4533-7-017-4533-7