Apesar de todas as actividades poluidoras e abate massivo de árvores levados a cabo pelo Homem ao longo dos últimos séculos, continuamos a viver numa atmosfera rica em oxigénio comparativamente aos primórdios do nosso planeta.
É também verdade que os organismos superiores respiram oxigénio, i.e. usam-no como aceitador final de electrões na fosforilação oxidativa (OXPHOS) nas mitocôndrias.
A cadeia transportadora de electrões é um sistema existente nas mitocôndrias dos seres eucariotas e na membrana plasmática de alguns procariotas que consiste basicamente num conjunto de complexos proteicos com centros metálicos responsáveis por transportar os electrões fornecidos pelo NADH/H+ e FADH2 produzidos durante o metabolismo aeróbio da glicose e/ou outros compostos, gerando um gradiente protónico que é posteriormente usado na síntese de ATP pela FoF1 ATP sintetase (Teoria Quimiosmótica de Mitchell).
Com tantos compostos possíveis, orgânicos e inorgânicos, endógenos e exógenos, porquê o oxigénio? Existem microorganismos que vivem alegremente fermentando (usando compostos orgânicos endógenos) ou respirando enxofre… Para os apoiantes do evolucionismo, a eventual razão apresentada será de facto convincente: se observarmos uma tabela de potenciais de redução em condições fisiológicas, vemos que a glucose e o oxigénio se encontram quase nos antípodas desta: sendo a glucose um óptimo redutor (dador de electrões) e o oxigénio um óptimo oxidante (aceitador de electrões), a maximização desta distância permite-nos tirar o máximo rendimento energético daquilo que consumimos. Esta estratégia permite, a título de comparação, que uma molécula de glucose sirva para produzir até 32 ATPs, enquanto que os diversos tipos de fermentação conhecidos no mundo vivo não vão além dos 2 ou 3.
Todavia, esta assaz e importante característica do oxigénio justifica também a expressão do Professor Doutor Vítor Madeira, quando diz “fujam do oxigénio como o diabo da cruz, pois ele é um veneno fortíssimo!”.
A reactividade in vivo do oxigénio pode ser facilmente explicada à luz da Mecânica Quântica (afinal de contas, “tudo se propaga como uma onda e troca energia como uma partícula…”). Uma teoria actualmente aceite para explicar a estrutura electrónica das moléculas é a Teoria das Orbitais Moleculares (TOM). Cada electrão pode ser representado por uma função de onda, cujo quadrado fornece a probabilidade de o encontrar no espaço. Estas orbitais moleculares podem também ser interpretadas como sendo combinações lineares das orbitais dos átomos que constituem a molécula (LCAO), obedecendo por isso também ao Princípio de Exclusão de Pauli e às Regras de Hund. O oxigénio (O2) é uma molécula obviamente diatómica homonuclear cujas orbitais ocupadas de mais alta energia (HOMOs) têm cada uma um electrão com spin paralelo ao outro (o spin, tal como a carga e a massa, é uma propriedade fundamental da matéria e assume o valor +0.5 ou -0.5 no caso dos electrões). Esta configuração particular faz com que o oxigénio seja um birradical (2 electrões desemparelhados). Acontece que o conhecimento da configuração electrónica revela-se por vezes insuficiente para explicar certos fenómenos. Electrões que ocupem duas orbitais distintas podem ter diferentes momentos angulares e/ou spins, existindo por isso sempre vários microestados associados a uma dada configuração (cada grupo de microestados com a mesma energia é um termo). A magnitude do número quântico de spin total (S) é dada pelo dobro da soma de todos os spins individuais mais um. Ora a maioria das moléculas no seu estado fundamental estão no estado singleto (S=2×0+1=1), pois têm todos os seus electrões emparelhados, ao invés do oxigénio que é um tripleto (S=2×1+1). Tal facto leva à falta de reactividade do oxigénio com as moléculas que o rodeiam, devido ao Princípio de Proibição de Spin, que nos diz que, em qualquer reacção química, a variação de spin total deverá ser nula.
Existem essencialmente duas maneiras de tornar o oxigénio reactivo: ou lhe fornecemos energia suficiente para os electrões das HOMOs emparelharem numa, passando-o assim a singleto (este é o princípio por detrás da terapia fotodinâmica do cancro, onde o oxigénio é activado para destruir os tecidos tumorais) ou lhe fornecemos electrões, causando eventualmente a formação de espécies com um electrão desemparelhado (os famosos radicais livres) muito instáveis.
Em condições normais, são usados 4 electrões e respectivos protões de cada vez para reduzir o oxigénio a água na OXPHOS. No entanto, podem também ocorrer prontamente reduções de 1 e 2 electrões do oxigénio, originando respectivamente o radical superóxido e peróxido de hidrogénio (este último pode ainda cindir-se homoliticamente em dois radicais hidróxilo). Esta irregularidade ocorre sobretudo ao nível do Complexo III da cadeia transportadora de electrões, uma vez que é aqui que ocorre o ciclo da ubiquinona, em que esta é capaz de aceitar um electrão de cada vez, podendo haver indevidas fugas de electrões para o oxigénio. Estas “espécies reactivas de oxigénio” (ROS) formadas são sobejamente conhecidas por danificarem prontamente as biomoléculas que encontrem pela frente.
O envelhecimento pode ser definido como a acumulação de diversos danos nas células, levando a um progressivo declínio das funções biológicas e da resistência a danos internos. Existem três teorias vigentes para este fenómeno: a teoria mitocondrial, onde este organelo adquire um papel central; a teoria da senescência celular e morte, em que a perda gradual de células activas e poder de regeneração é destacada; e a mais recente teoria da inflamação, em que a sobreexpressão de genes pró-inflamatórios ao longo do anos enfraquece o organismo. Como teremos oportunidade de ver de seguida, todas elas envolvem ROS.
Ao longo dos últimos anos, os dados experimentais apontam para uma mudança do estado redox das células com o envelhecimento, propiciando a ocorrência de stress oxidativo. Este último caracteriza-se pelo excesso de ROS, as quais provocam: peroxidação de lípidos, comprometendo a integridade das membranas celulares e activando vias de sinalização de stress; oxidação de cadeias laterais de aminoácidos, alterando a função de proteínas reguladoras e a actividade de enzimas (exacerbada pela diminuição do turnover proteico com a idade); diversos danos no DNA (e.g. oxidação da desoxirribose e bases azotadas, quebras na cadeia dupla) despoletando apoptose e senescência celular.
A enumeração anterior per se seria já suficiente para entender intuitivamente os danos causados no organismo por ROS, mas passemos a algumas concretizações.
Descobriu-se que existe um grupo de factores de transcrição – proteínas Forkhead (“cabeça de garfo”) – que participam numa miríade de vias de sinalização inerentes a situações de stress, apoptose e controlo do ciclo celular. Curiosamente, as vias intrínseca e extrínseca da apoptose, a p53 e até o encurtamento dos telómeros (cujo estudo valeu um Nobel da Medicina em 2009 e ao qual se atribui um impedimento a priori à possibilidade de imortalidade) são também regulados por ROS. Aliás, o aumento destas activa as ditas Proteínas Forkhead, o que leva à produção de moléculas pró-inflamatórias através da activação de genes, levando à produção de mais ROS como mensageiros químicos. Este retrocontrolo positivo elucida um pouco a correlação da incidência de cancro, doenças neurodegenerativas e outras associadas à presença de inflamação com a idade.
Outro caso também interessante é o da autofagia. Esta caracteriza-se pela captura de proteínas constitutivas, fragmentos membranares e outros eventuais desperdícios celulares por vesículas autofágicas, sendo depois degradados em lisossomas. O seu papel no estudo do envelhecimento tem adquirido um crescente relevo, uma vez que assegura a reciclagem de componentes celulares danificados, tendo sido de facto confirmada a sua importância na extensão artificial de espécies geneticamente modificadas e em doenças neurodegenerativas (a agregação proteica em neurónios com activação excessiva de autofagia é apontada como uma das principais causas destas enfermidades). Apesar disto, este processo tem também um comprovado efeito indutor da apoptose. Um desequilíbrio nesta função causado por danos oxidativos em proteínas reguladoras e dos lisossomas é, então, mais uma característica relacionada com o envelhecimento.
Posto isto, várias investigações decorreram e decorrem no sentido de aumentar a esperança média de vida com qualidade das pessoas. Infelizmente, não se conseguiram ainda obter resultados consistentes acerca do efeito de estratégias relacionadas com estes conhecimentos, tais como a expressão de certos genes, administração de enzimas e pequenas moléculas antioxidantes, etc. Alguma da polémica à volta deste tema tem que ver com o facto de os modelos de envelhecimento usados em laboratório terem tempos de vida demasiado curtos para as conclusões poderem ser extrapoladas para humanos e de ainda não se ter conseguido estabelecer uma relação causa-efeito sólida entre ROS e envelhecimento (e.g. a acumulação de mutações no DNA mitocondrial não causadas por ROS é inequivocamente observada com o passar dos anos, alertando para a hipótese de que o excesso de ROS poderia ser apenas um efeito secundário e não uma causa em si). Parece que apenas a restrição calórica (CR) se tem revelado promissora, pelo menos a curto prazo, num grande número de espécies. As explicações correntes para o modo desta actuar prendem-se sobretudo com uma eventual diminuição da produção de ROS mitocondriais e restabelecimento de níveis normais de actividade autofágica em organismos envelhecidos. Estaremos nós condenados à decadência física e psíquica?
Os mecanismos envolvidos no envelhecimento não devem ser passíveis de ser explicados apenas por uma teoria, havendo já no entanto a noção de que, não só existe um incremento da produção e acumulação de ROS como também um decréscimo da capacidade de reparar os danos provocados por elas. Uma velha máxima diz que “nós somos aquilo que comemos”. Pois eu humildemente sugiro que se reconheça veementemente que também somos aquilo que respiramos!
May Biochemistry be with you!