Genes, Células, Clones e Gen(ÉTICA)

Darwin e a evolução das espécies. Deus Todo-Poderoso como entidade megalómana. Alma para lá do corpo. ATGC, o código universal como fonte de vida como a conhecemos. Cada um escolhe a crença através da qual rege a sua existência. Independentemente da escolha, ciência e religião, religião e ciência, entre outras questões mundanas de limiar inferior, embatem de frente numa linha de batalha que se chama ética. Esta serve o indulgente, o satírico, o intransigente e até o cético, servindo-se a si mesma de uma dose por medida das duas porções de uma mesma dicotomia.

Atente-se ao assunto da clonagem, primeiro na sua essência mais crua, a clonagem reprodutiva, e depois à clonagem mais “tolerável”, a terapêutica. Pondo de lado dogmas, limitações tecnológicas do nosso tempo (cada vez menos e, mais tarde ou mais cedo, solucionadas) e refletindo à luz de um pragmatismo em incubação, quais são as vantagens para a espécie humana, quer em termos de aplicação quer de custo-benefício? Negar o conceito torna-o menos real ou faz desaparecer as suas sub-formas de coexistência? Vai depender muito de que tipo de clonagem estamos a falar.

A clonagem, sem grandes definições e embelezamentos, designa a obtenção de seres vivos (animais, vegetais ou microrganismos) geneticamente iguais, por meio de um processo de reprodução assexuada. Em decorrência da crença inabalável e irreproduzível da vida humana, a possibilidade de duplicar/copiar um ser vivo encontra, no campo da ética, “razões que a razão conhece” que, logo à partida, são contestáveis. É considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como eticamente inconcebível. A ideologia que sustenta essa posição da OMS deriva do racionalismo individualista de Kant que, na sua interpretação filosófica, concluiu que o homem é um fim em si mesmo, sendo eticamente incongruente considerar o indivíduo enquanto meio para um fim eugenista da espécie humana. Ora, está pois claro que ao comentar sobre clonagem reprodutiva, principalmente na nossa espécie, saberemos instantaneamente que é um campo minado. Perigoso, portanto. Sobretudo se o tema puder ser radicalizado a um extremo que aflora muito longe do nosso “perímetro de segurança”.

Vejamos o caso de Claude Vorilhon, ou Raël, ou o “homem dos clones”, como também é conhecido. Acredita que a clonagem de humanos é a “fonte para a vida eterna”. Diz ter sido raptado por seres extraterrestres em 1973, os quais lhe terão revelado a verdadeira origem da Humanidade: fomos criados em laboratório por estes, os Elohim. Raël é o líder da seita Raeliana, que questiona a teoria da evolução, defendendo a clonagem humana, e que está por trás da Clonaid, uma empresa que em 2002 alegou ter clonado o primeiro ser humano, Eva. Foram solicitadas, tanto pelos tribunais americanos como por vários cientistas, provas dessa clonagem, coisa que nunca veio a ser entregue pela Clonaid, estando longe de se provar tal acontecimento.

A clonagem reprodutiva, feita pela 1ª vez em 1996 com a ovelha Dolly a ser o primeiro mamífero clonado a partir da célula de um animal adulto, despertou o interesse mundial sobre o assunto, tendo incendiado opiniões e incitado a debates sobre implicações éticas, como já sabemos. Para clonar a Dolly, foi transferido material genético do núcleo de uma célula somática de um dador adulto para um óvulo cujo núcleo havia sido removido. Depois de tratamento adequado, passou a comportar-se como um zigoto recém-fertilizado e, posteriormente, foi implantado no útero de uma fêmea hospedeira, onde seguiu o curso normal até ao nascimento. Claro que esta técnica não é exclusiva, há outros meios.

A meu ver, um dos direitos violados com a clonagem reprodutiva humana é o da indiscriminação do próprio Homem, já que, sendo possível criar clones, apenas pessoas com certas características seriam aceites, o que poderia ter efeitos prejudiciais em termos de culturas, raças e biodiversidade. Além disso, se, como espécie sexuada, somos dotados de conceber outro ser único que resulta da individualidade de um óvulo e um espermatozoide, para quê abdicar disso para passarmos a “propagar” ao estilo de um microrganismo do tipo bactéria?

Na era da inteligibilidade contemporânea, a clonagem é ainda envolta numa nuvem de misticismo, muito em parte pela aceção errónea de que clonagem reprodutiva e terapêutica são sinónimos. Esta última, que é também designada por clonagem não-reprodutiva, visa o cultivo de tecidos e órgãos através da reprodução de stem-cells. Oferece, assim, um potencial significativo na medicina regenerativa, contornando a rejeição imunológica, e na cura de desordens genéticas quando usada em conjunto com a terapia génica. No contexto da terapia de substituição celular, possui interesse para a organogénese de novo e para o tratamento permanente de doenças, como Parkinson, distrofia muscular de Duchenne e diabetes mellitus, já demonstrado em estudos in vivo. Os obstáculos que impedem o avanço da clonagem terapêutica prendem-se com a tumorigenicidade, reprogramação epigenética, heteroplasmia mitocondrial, transferência entre espécies de patogénicos, baixa disponibilidade de óvulos. De referir também as considerações éticas relativas à origem, destruição e status moral dos embriões de fertilização in vitro.

A “interrupção” de embriões após obtenção das células estaminais pode frequentemente conduzir o tema a uma encruzilhada de fogo, uma vez que se eleva o argumento do uso egoísta de embriões utilitários. Mas a pergunta fica no ar: os benefícios que daí podem resultar (e que, de facto, resultam), não justificaria a sua utilização nesta nova era da Medicina?

Para um mesmo assunto, há de haver sempre um lado a favor e um contra. Parece-me importante regulamentar muito bem toda esta situação.

Para millenials que, como eu, cresceram a ouvir e a aprender sobre isto e, sobretudo, a encarar isto como o “futuro ao virar da esquina”, o termo clonagem pode não ser senão mais do que uma demonstração da evolução da ciência em todo o seu esplendor. Para os mais temerosos, trata-se de um virar de milénio com direção ao Apocalipse.

Não esquecer que o Homem é muito mais do que o produto dos seus genes, mas sim um ser social, cultural e biologicamente moldado ao longo dos tempos. Por isso, temos de nos concentrar num between que não subjugue os Direitos Humanos, brincando aos Deuses e Semideuses, mas que nos permita caminhar cientificamente para uma Medicina mais evoluída. Eticamente evoluída, remato.

Ana I. Sousa, 2º ano Mestrado Integrado em Medicina

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