Antropologia em tempos de pandemia

Nas últimas décadas, a antropologia tem mantido uma relação de proximidade com as problemáticas da epidemiologia e a saúde pública. No contexto das políticas internacionais de saúde, os antropólogos procuram integrar ações desenvolvidas junto das comunidades, realçando a importância de considerar as perceções de saúde e doença destas na definição de prioridades, no planeamento e na aplicação de programas.

As epidemias não são redutíveis a estatísticas, sendo necessário não apenas entender os mecanismos do agente infecioso e procurar soluções de cura e prevenção, mas também compreender as relações sociais, históricas, económicas e políticas que enquadram ou condicionam escolhas e comportamentos individuais. Os antropólogos têm um papel fundamental no desenvolvimento de respostas úteis e contextualizadas no combate às epidemias. Como agentes sociais qualificados e possíveis mediadores entre o poder e a sociedade civil, cabe-lhes interpretar e compreender as formas de pensar as problemáticas epidemiológicas de base amplamente social.

Os métodos qualitativos usados pela antropologia dão rosto, trajetória e biografia aos números das estatísticas. As suas ferramentas conceptuais evidenciam a complexidade e multiplicidade de significados atribuídos aos fenómenos de saúde e doença pelos atores envolvidos na dialética epidemiológica. A COVID-19 é hoje uma doença global, mas não um fenómeno vivido da mesma forma em todos os lugares geográficos e por todas as pessoas. A antropologia e as ciências sociais são indispensáveis para pensar de forma contextualizada os seus efeitos nas populações.

A pandemia trouxe uma disrupção generalizada na vida social e na prática habitual da antropologia. A metodologia tradicionalmente utilizada em investigações antropológicas, que visam um contacto direto com os sujeitos e comunidades em que se introduzem (etnografia, observação participante, histórias de vida, entrevistas), foram sujeitas a alterações substanciais de forma a ultrapassar barreiras espaciais impostas pelas medidas de restrição da COVID-19. No entanto, este não é o primeiro cenário epidémico mundial e, no passado, mesmo sem internet ou estatísticas ao minuto, a antropologia manifestou uma enorme capacidade de adaptação e reinvenção dos seus métodos de pesquisa em cenários atípicos.

Um exemplo de ajustamento é a Ebola Response Anthropology Platform. Esta plataforma digital trabalha proactivamente com organizações humanitárias e de saúde na projeção de intervenções e pesquisas localizadas mais responsivas e socialmente informadas. Através da experiência antropológica existente, a plataforma fornece informações claras, práticas e em tempo real relacionadas com as dimensões socioculturais cruciais no combate a um surto epidémico.

Esta iniciativa possibilita o contacto rápido via qualquer meio de comunicação digital entre cientistas sociais e equipas de controlo, ONGs, governos e agências internacionais facilitando a sua interação no desenvolvimento de intervenções coordenadas e apropriadas para dar resposta a surtos de ébola em África. Procurando contribuir na construção de políticas de saúde global mais amplas, a plataforma pretende também avançar com uma perspetiva comparativa entre o ébola e o seu combate e outras infeções emergentes.

Os meios de comunicação digital possibilitam vencer a distância, criar novos modos de fazer pesquisa e novas oportunidades de comunicação com lugares improváveis e que de outra forma não seriam acessíveis sem viajar para o local. Estes meios não são novos, mas hoje a participação em encontros e conferências online nos antípodas é banal e manifesta condições para ser continuada num futuro pós-pandémico (mas não em exclusividade). O mundo contemporâneo é, em larga mediada, digital. Não obstante, é também imperativo ter em mente que, a dependência da tecnologia pode ser problemática e segregadora tendo em conta as diferenças económicas e geográficas que podem dificultar o acesso a recursos eletrónicos.

Os antropólogos da nova realidade, já ultrapassaram a distância física. Assim, devem manter-se críticos e participativos na comunidade ou comunidades em que se inserem, reinventando meios e métodos de pesquisa e aprendendo a reagir a novas circunstâncias.

A que criarmos agora será a nova tradição. A reinvenção da prática é o novo futuro.

Carlos Cândido –Licenciatura em Antropologia

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