2020, o ano que nos fez pensar sobre ciência

Ao falar da atualidade mundial, a COVID-19 é um tema incontornável. Afinal de contas, esta doença maldita condiciona as nossas vidas há mais de um ano, tempo demais! Mas façamos um exercício simples e olhemos para os números. À data em que escrevo esta crónica, em finais de março, o total acumulado de casos confirmados de COVID-19 ascendia a cerca de 130 milhões, que se traduzem em cerca de 2.8 milhões de mortes. Em comparação, na afamada gripe espanhola, as estimativas apontam para 500 milhões de casos que resultaram num número de mortes que alguns especialistas menos conservadores dizem ter sido de 100 milhões de pessoas. É certo que a pandemia de COVID-19 ainda não acabou e parece longe disso, mas creio que é seguro dizer que o impacto funesto desta pandemia ficará felizmente muito aquém de outras no passado.

Mas como explicar tamanha discrepância de fatalidades entre as duas pandemias supracitadas? Certo é que há diferenças naturais intrínsecas entre o coronavírus que causa a covid-19 e o vírus influenza que causou a gripe espanhola, mas isso não explicará tudo. A resposta correta está na ciência, isto é, no conhecimento muito mais alargado que hoje temos sobre todos os aspetos deste mundo. São os avanços científicos que permitem que os cuidados de saúde primários sejam cada vez mais acessíveis e abrangentes. É a tecnologia que a ciência possibilitou que permite que a higiene seja hoje um dever de cada um e não apenas um luxo das elites. Foi a ciência quem trouxe terapias cada vez mais eficientes e eficazes. E claro, algo mais específico desta pandemia, foi a ciência quem nos deu em tempo recorde armas para a contra-atacar e para evitar que se tenha de expor toda a população a este desapiedado vírus.

Perante a evidência, acaba por ser um pouco paradoxal que a ciência seja o parente pobre das políticas governamentais. Eu percebo, ela não dá resultados a curto-prazo, por isso uns milhões nela aplicados seduzirão sempre menos eleitores que os mesmos milhões aplicados noutros setores, mas a realidade é que foi nela que alguns países se fiaram para se tornarem em potências económicas, sendo que a Coreia do Sul e Israel são os dois exemplos mais bem-sucedidos. E é também paradoxal que muitos órgãos de decisão optem por ignorar aquilo que os cientistas dizem, seja porque não lhes dá jeito aceitar a realidade, seja porque não querem acreditar, ou seja, simplesmente, por pura ignorância. Recentrando o debate na COVID-19, há dois exemplos que ilustram na perfeição esta premissa. 1) Em 2015, um artigo publicado na revista Nature Medicine mencionava os perigos de um grupo de coronavírus que se encontrava a circular em morcegos (para ler, pesquisar pelo seguinte doi: 10.1038/nm.3985). O guião de “cientista ignorado que acaba por prever um futuro catastrófico” é digno de filme de ficção científica, mas dá que pensar. O que seria o mundo hoje se o trabalho destes cientistas tivesse sido efetivamente considerado? 2) A posteriori, embora ainda reine a discórdia sobre qual a forma mais correta de atacar a COVID-19, uma das poucas coisas consensuais é que as políticas aberrantes de Trump e Bolsonaro são tudo aquilo que não se deve fazer. O que é que ambos têm em comum? Ambos despreza(ra)m a ciência e os seus protagonistas. Aliás, dado o descontrolo da pandemia no Brasil (à data que escrevo) e dado que os vírus são capazes de se mutar com frequência, a atitude passiva/contraprodutiva do presidente brasileiro é um autêntico risco para o mundo inteiro, pois se aparecer um “novo” coronavírus derivado deste, mas que seja suficientemente diferente, há o risco sério de o mundo voltar à estaca zero nesta guerra global.

O principal combustível que alimenta esta fação de negacionistas é a incompreensão da ciência. Desconhecimento efetivo dos assuntos, mas também incompreensão acerca do método científico. Um bom cientista possui obrigatoriamente duas características: humildade e criatividade. Assim, e principalmente quando o grau de incerteza é grande (como agora) a criatividade dos cientistas leva a que haja uma série de opiniões diferentes sobre determinado assunto. Porém, à medida que as teorias são testadas, há a humildade de perceber quando é que determinada teoria é errada (ou menos boa), que natural e consequentemente é abandonada. Foi nessa ótica que os ingleses e os suecos desistiram das suas estratégias peculiares de combate à pandemia. Este aspeto é uma das melhores coisas da ciência. A ciência nunca será consensual, mas o que a move é a procura pelo consenso, sempre assente em evidências palpáveis. A procura pelo conhecimento é um processo que será sempre inacabado, mas todos os dias o nosso conhecimento aumenta.

Eu comecei este texto fazendo um paralelismo entre a pandemia que vivemos e a gripe espanhola. Permitam-me fazer uma afirmação corajosa, que é feita apenas e só por convicção: se a COVID-19 tivesse aparecido há 100 anos, sem que o mundo possuísse os avanços científicos do último século, a death toll não se firmaria em números tão modestos. Assim, a maior lição que a COVID-19 nos deixa é que a ciência, a inovação e o conhecimento são sempre a melhor resposta que a sociedade pode dar contra desafios exigentes como este, mesmo que o adversário seja novo e desconhecido. A evolução tecnológica da sociedade tem sido tão rápida que quase passa despercebido o papel da ciência, mas é minha esperança que esta pandemia seja o clique que faltava para abrir os olhos a muitos sobre o seu papel e sobre o seu potencial enquanto agente transformador do mundo. Espero assim que a COVID-19 tenha como consequência políticas reformistas e vanguardistas onde a ciência seja protagonista e não (como habitualmente) mera nota de rodapé, usada com o propósito uno de credibilizar decisões aos olhos do povo. Talvez eu seja um sonhador, mas como se costuma dizer, o sonho comanda a vida.

Cláudio Costa

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