As vacinas contra o coronavírus “trocadas por miúdos”

A vacinação foi e continua a ser um dos maiores avanços do nosso mundo. Com as vacinas, pudemos deixar de combater doenças potencialmente mortais antes sequer delas aparecerem, jogando por antecipação. Devido às vacinas, fomos, enquanto sociedade, capazes de erradicar verdadeiras pragas, como a varíola, e de limitar outras, como o tétano ou o sarampo.

A história do desenvolvimento de vacinas já conta com muitos anos. Contudo, face à dificuldade que é criar uma vacina eficaz, só por duas vezes a ciência desenvolveu vacinas em menos de uma década: a da papeira demorou 4 anos, e a do sarampo demorou 9. Geralmente, este processo demora décadas e casos há em que mesmo ao fim de mais de 100 anos de investigação ainda não existe uma vacina universal verdadeiramente eficaz (como acontece com a malária). Foi assim deveras surpreendente que a comunidade científica, em menos de 1 ano, tenha conseguido desenvolver tantas e tão variadas vacinas para combater a covid-19.

Mas como explicar que o processo tenha sido tão célere desta vez? Uma das causas é o facto do mundo se ter unido em prol deste objetivo. Gastou-se dinheiro em barda e mobilizou-se gente como nunca. Outra das causas foi o facto de se terem começado testes em humanos muito mais cedo e das entidades reguladoras terem acompanhado este processo muito mais de perto, o que permitiu perder muito menos tempo nas questões burocráticas (que, atenção, são essenciais para garantir a qualidade, eficácia e segurança das vacinas). Mas a causa principal acaba por ser um conjunto de descobertas que permitem revolucionar este processo. Nos próximos parágrafos tentarei explicar sucintamente a biologia por detrás das mesmas.

Sistema Imunitário

Antes de explicar o funcionamento das vacinas, é necessário explicar como funciona o sistema imunitário (SI). O SI humano é definido como o conjunto de estruturas, barreiras, e processos biológicos que protegem o ser humano contra os ataques a que está sujeito. Os seus principais atores (embora não os únicos) são os leucócitos, vulgarmente chamados de glóbulos brancos, que são um autêntico exército biológico que anda em constante movimento ao longo do nosso corpo atento a ameaças, para poder neutralizá-las o mais rapidamente possível.

Tal como num exército há vários tipos de militares, também nem todos os leucócitos são iguais, sendo que cada tipo tem uma função especializada. As funções de ataque mais direto estão a cargo, entre outros, dos neutrófilos, macrófagos e linfócitos T citotóxicos. Algumas destas células são menos seletivas que outras (por exemplo, os neutrófilos são vulgares soldados rasos, enquanto os macrófagos são uma espécie de força especial que só atua quando é chamada à ação e só contra determinados alvos), mas, no fundo, o que elas fazem é destruir tudo o que seja considerado perigoso para o nosso organismo – os antigénios – como são bactérias, células infetadas por vírus, células a funcionar mal (por exemplo células cancerígenas), et cetera.

Depois de eliminar ameaças, algumas células (p. ex. os macrófagos) partem os antigénios em pedaços e apresentam-nos às células T auxiliares, que são os generais deste exército e coordenam uma resposta mais complexa. Em primeiro lugar, podem recrutar mais macrófagos. Em segundo lugar, podem mostrar o pedaço que receberam aos linfócitos B, levando-os a fazer duas coisas: 1) a produzirem anticorpos específicos para esse pedaço do antigénio, que são libertados depois no sangue. Se algum dia os anticorpos voltarem a contactar com o antigénio, este fica marcado e é depois descoberto rapidamente pelo nosso exército, não tendo assim tempo para causar doença; 2) ou a transformarem-se em linfócitos B de memória, que basicamente estarão sempre de sentinela para produzirem anticorpos rapidamente quando voltarem a ver o antigénio (ou, para ser mais correto, quando virem o pedaço que já conhecem). Por fim, as células T auxiliares podem também se transformar em células T de memória, que funcionarão também como sentinelas.

Importa dizer que isto é, claro, uma síntese muito curta e que a resposta imunológica é muito mais complexa que isto, havendo muitos mais players envolvidos na mesma.

O DNA e o processo de produção de proteínas

Outro conceito importante para perceber como funcionam as vacinas contra a Covid-19 é o de como são produzidas as proteínas nas nossas células.

Fazendo uma analogia imperfeita, as nossas células são como pequenas fábricas em que se produzem peças de todo o tipo, as proteínas. No núcleo das células (o escritório), está guardado o manual de instruções para produzir todas as proteínas humanas. Esse manual é o código genético: o DNA. Ora, existem milhares de proteínas humanas, pelo que se poderá deduzir facilmente que tal livro se trata de um verdadeiro calhamaço!

Suponhamos agora que, num determinado momento, é preciso produzir um parafuso. Não faria sentido o engenheiro ir ao escritório, pegar no DNA inteiro e mostrá-lo ao operário (o ribossoma), que obviamente ficaria perdido com tanta informação desnecessária para produzir um só parafuso. Assim, aquilo que o engenheiro faz é abrir o DNA na página certa e copiar as instruções para produzir esse parafuso para um papel. Essa cópia é o RNA mensageiro. Depois, o engenheiro entrega o papel ao operário, que olhará para lá e produzirá o parafuso desejado rapidamente. Com o parafuso feito, o papel deixa de ser necessário, e por isso é deitado ao lixo.

A infeção viral

Por fim, é preciso perceber como é que as nossas células são infetadas pelos vírus.

O primeiro passo na infeção viral é a infeção per se, isto é, a entrada do vírus nas células. Este mecanismo varia de vírus para vírus. No caso do coronavírus, ele aproveita um recetor que existe à superfície das nossas células e usa-o como porta. Como é que ele faz isso? Fá-lo porque consegue usar os seus espinhos como puxador.

Enfim dentro da célula, os vírus comportam-se como terroristas dentro da fábrica, fazendo dos operários reféns e obrigando-os a produzir o que eles quiserem. Em concreto, os vírus obrigam os operários a produzir as suas próprias proteínas, ou seja, a produzir peças necessárias para que se possam “montar” mais unidades do vírus.

Por fim, quando todas as peças para montar um vírus inteiro estiverem prontas, um vírus novo é “montado” e é exportado para o sangue para ir infetar mais células.

As vacinas old-school e as novas formas de fazer vacinas

Tradicionalmente, a forma de vacinar pessoas mais comum é através da introdução do próprio antigénio, obviamente tratado para que não seja perigoso. Isso pode ser feito de diversas maneiras. Só para dar um exemplo, no caso da vacina da gripe, injeta-se as pessoas com o próprio vírus só que previamente destruído. Quando as células do sistema imunitário encontram estes “cadáveres” no corpo, encaram-nos com seriedade e desenvolvem uma resposta imunitária completa como se estivessem perante algo perigoso. Sendo uma resposta completa, isso envolve a formação de anticorpos e de células de memória. Assim, no futuro, se as células de memória contactarem com um vírus vivo, rapidamente o atacam porque já sabem os seus pontos fracos.

O problema das formas tradicionais de fazer vacinas é que são muito morosas e difíceis. Encontrar formas de destruir ou inativar um antigénio sem o desfigurar completamente (pois assim ele ficaria demasiado diferente do original e depois as células do SI não o reconheceriam) é um desafio extremamente complexo, que redunda quase sempre em vacinas pouco eficazes e, portanto, inúteis. Felizmente para nós, nos últimos anos tem havido investigação para desenvolver vacinas de outras formas que permitem, acima de tudo, acelerar todo o processo.

Uma dessas estratégias faz uso do RNA mensageiro, o tal “papel”. Nas vacinas deste tipo, é então injetado nos pacientes um papel com as instruções para produzir proteínas inofensivas do antigénio, que é depois transportada no sangue até às nossas células. Lá, os operários olharão para o papel e, como não são pagos para pensar, simplesmente produzem o que lá está escrito. Quando tal coisa é produzida, as células do SI assustam-se e tratam essas proteínas como uma ameaça, produzindo também anticorpos e células de memória. Há pelo menos três vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia: a da Pfizer, a da Moderna, e a da CureVac. Nelas, as instruções que vão no papel são para produzir o espinho do coronavírus, que, fora do vírus, sozinho, não faz nada (relembro: é só o “puxador da porta”). Assim, mais tarde, quando pessoas já vacinadas são infetadas com o coronavírus, as células de memória podem nunca ter visto o vírus inteiro antes, mas como já conhecem o espinho, atacam-no logo porque se lembram dele como algo perigoso, sem dar tempo ao vírus de se reproduzir e causar a doença.

A outra nova estratégia para produzir vacinas faz uso de outro vírus, o adenovírus. Basicamente, lembrando-se que os vírus quando infetam as células fazem dos operários seus prisioneiros, os cientistas pegaram no adenovírus, tiraram-lhe o que consideravam inútil e puseram dentro instruções para produzir coisas que lhes interessam. No caso das vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia, os cientistas puseram nesses vírus instruções para produzir o espinho. Assim, nas pessoas vacinadas com uma vacina deste tipo, é injetado este vírus modificado e depois é só esperar que ele comece a infetar células. Quando tal acontece, os operários, reféns, produzem os espinhos do coronavírus e a partir daí o processo é igual ao das vacinas de RNA mensageiro. Entre as vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia estão a da AstraZeneca, a da Johnson & Johnson, e a vacina russa Sputnik V.

Ou seja, muito resumidamente, a grande diferença entre as vacinas disponíveis contra o coronavírus é que num caso os operários produzem espinhos sem o saber, e no outro produzem-nos porque estão reféns de outro vírus.

Como dá para perceber, com estas novas estratégias, a única coisa de que precisamos para produzir vacinas é o “manual de instruções” do antigénio. Assim que soubermos isso, é uma questão de meses até se montar uma vacina eficaz. No caso do coronavírus, fruto do trabalho incessante da comunidade científica, a sequenciação do genoma do vírus aconteceu em poucas semanas, pelo que rapidamente foi possível começar a trabalhar nas soluções. A utilização em larga escala de novas tecnologias para criar vacinas é algo que já vinha sendo preparado há anos, mas com a urgência da situação atual, a comunidade científica arrepiou caminho e apresentou-nos soluções verdadeiramente revolucionárias. O combate contra a covid-19 é a primeira aplicação das mesmas, mas certamente não será a última, pelo que podemos ter esperança no desaparecimento de várias doenças a médio-prazo com base em tudo aquilo que aprendemos neste último ano. Assim, num tempo com poucos motivos para celebrar, celebremos o progresso!

Cláudio Costa

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