O antes e o depois

Hoje é quarta-feira e decido que não adianta mais chorar… tenho que encarar que agora a minha vida é aqui, Coimbra agora tem de ser casa, pelo menos assim terá de o ser nos próximos 3 anos, e no fundo estou perto de casa, sexta-feira é já daqui a dois dias. É nisto que penso antes de ir dormir, amanhã é quinta tenho um jantar de curso, tudo vai melhorar, penso eu… repito esta ideia muitas vezes para se tornar mais real. Acordo, ainda não entendo bem porque tenho que levantar a mão para o autocarro parar, afinal se existe uma paragem é para ele parar, mas bem, lá levanto o braço e entro. Já consigo ver algo de positivo, hoje já é quinta, já sei que se estica o braço para apanhar o autocarro e a praxe acaba já amanhã, pelo menos esta semana.

Enquanto subo as monumentais visto a t-shirt de caloira e penso em contar os degraus que tanto odeio, 125, 125 degraus que guardam história. Dou por mim a pensar em como os meus pais subiram estes mesmos degraus quando eram namorados, essa ideia agrada-me e aquece o coração, talvez nunca tenha pensado tanto em como gosto dos meus pais como nesta semana. Colocamo-nos em fila para a praxe e afinal dou por mim a pensar que até é algo divertido, o bicho mau de que tanto falam não parece assim tão perigoso, parece até engraçado, cansativo, é certo, mas muito melhor do que tudo o que tinha ouvido falar. Afinal de contas a Praxe não se revela o meu maior problema, tentar não me rir durante a mesma, esse sim, parece o dilema. No fim das aulas volto para casa e penso “que raio hei eu de levar vestido a um jantar de curso”, aliás “que raio vou eu falar no jantar”, mas a confiança é alguma, já tenho uma amiga e alguém que mora perto para não ter de voltar para casa sozinha, vistas as coisas o saldo parece positivo.

O jantar correu, a saída pós jantar correu e já estamos no último dia da primeira semana, o único dia em que já não como na cantina com aquelas que serão as caras que mais vou ver nos próximos 3 anos. Pequeno segredo, até agora os almoços tem sido a parte preferida dos meus dias, comer de mindinhos dados com os nossos colegas pode ser mais engraçado do que imaginam, comer almondegas e esparguete apenas com uma faca revelou-se o menor dos mistérios e sempre é um momento em que vemos outros tão apavorados quanto nós.

Lá vou eu para a paragem de autocarro de novo, sinto muito que a minha vida tem sido uma constante descer e subir de monumentais esta semana, mas desta vez tenho companhia, duas raparigas com quem falo, uma delas uma mocinha de caracóis muito simpática (foi esta a descrição que dei à excelentíssima minha mãe), uma rapariga com sotaque carregado do norte e uma rapariga do meu curso, penso que nunca falei com ela, não sei sequer como se chama, mas quando não temos pessoas próximas um conhecido é sempre melhor que estar só. Meto conversa com ela no autocarro, mas rapidamente recebo esta questão “também estás a odiar?”, sinto que foi a pergunta mais honesta que alguma vez recebi, ninguém gosta de admitir que está a odiar a primeira semana, ninguém gosta de admitir que lhe está a ser difícil fazer amigos, especialmente quando todos à nossa volta parecem estar a adorar. Uma pergunta tão sincera como esta fez com que achasse que aquela seria a minha amiga da Universidade, afinal, passei anos da minha vida a ouvir a minha mãe falar com amor das amigas da universidade a quem chamo de tias.

As semanas vão passando, começo a gostar de estar em Coimbra, a praxe parece ser algo positivo até certo ponto e já posso dizer que tenho mais que uma mão cheia de conhecidos com quem falo regularmente. Chega a latada, sinto-me feliz pois já tenho uma amiga, a mocinha dos caracóis tem-se revelado uma verdadeira amiga, e por sorte descobrimos que somos vizinhas e que as nossas madrinhas são amigas. A escolha da madrinha foi outra fonte de preocupações, como haveria eu de escolher alguém para me ajudar, guiar e auxiliar se mal conseguia falar com as raparigas do 2 ano? Mas seguindo a intuição acabei por fazer a melhor escolha alguma vez possível. Muitas vezes falasse das madrinhas com frases clichê, mas não haveriam clichês suficientes para a madrinha que escolhi. Uma madrinha com nome de flor, sentido de humor do melhor e um coração puro, talvez até demais.

Mas bem, passou a latada, tive direito às minhas orelhas de burro com uma dedicatória que guardo até hoje, ao meu fato de cowgirl, ao desfile por Coimbra com a menina dos caracóis e também com a menina com quem fiz amizade no autocarro, que ia muito engraçada vestida de M&M e com trancinhas que sobressaiam o seu ar doce, tive direito aos meus pais estarem presentes e aos comentários engraçados que as minhas irmãs faziam “afinal é isto vir para a universidade?” diziam elas enquanto se riam de alguns rapazes que desfilavam vestidos apenas com umas collants e sutiã.

Dias passaram e com eles chegou a primeira época de exames, tudo parecia complicado, apesar do estudo contínuo que havia tido ao longo do semestre sento-me na secretária em pânico antes de cada exame. Até que vem o primeiro chumbo, apesar de no futuro o vir a encarar como algo normal, que se ultrapassa, neste momento sinto-me perdida, nunca eu tinha chumbado a algo, como é que isto poderia estar a acontecer. Estudo, estudo e estudo, afincadamente com a minha companheira de estudo (e que mais tarde se revela também companheira de vida), a menina M&M, e juntas festejamos também a vitória e alívio de ter aprovação no recurso. Química geral torna-se decididamente um marco para nós, a primeira cadeira que fizemos em recurso.

Com o fim dos exames chega a altura das saídas, das festas, dos jantares, novas cadeiras, mas agora tudo parece melhor, já tenho o meu trio e mais alguns amigos com os quais saímos várias vezes. Até que… bem, até que todos somos mandados para casa. “Até daqui a 15 dias” diz a minha amiga dos caracóis. 15 dias passam e depois destes mais 15, outros 15 e começo a perceber que não vamos voltar. O meu ano de caloira acaba desta forma, com aulas on-line, convívios por Zoom, muitos áudios entre amigos e muita força para fazer os exames on-line. É em momentos como estes, em que pensamos que não vamos conseguir fazer uma cadeira, porque a ligação caiu, porque todos submetem ao mesmo tempo o exame e a plataforma vai abaixo, é nestes momentos que o nosso coração acalma quando olhamos para os quadradinhos do Zoom e vemos que as nossas amigas estão com o mesmo pânico que nós e sentimos que estamos nisto juntas. Talvez esta seja a maior lição que tiro do meu ano de caloira, nada se faz sozinha, a Universidade não se faz sozinha, e é graças a ela que criamos amizades, que embora curtas em tempo são mais fortes do que podemos pensar.

Inicia-se assim um novo ano, já não sou caloira. Em conversa com amigos ainda dizemos “os do segundo ano”, ao mesmo tempo paramos para respirar e retificamos “quer dizer nós”… Agora somos nós os doutores, já podemos somar ao livro de queixas a dor que os sapatos do traje causam ou o facto de capa ser muito quente para o outono, somos nós os que praxam, e verdade seja dita, praxar revela-se pior que ser praxado, somos nós os que olham para as caras ansiosas da caloirada e não conseguimos conter um sorriso, porque nos lembramos do que passámos e com ar sabichão dizemos “este ano estão cheios de sorte, fosse como o ano passado…”.

Este ano não é igual ao anterior, é diferente, exige mais cuidados, mas mesmo assim não deixa de ser especial, se bem que carrega consigo um travo agridoce, estou feliz por estar de volta a Coimbra, mas infeliz por não a poder viver como só um estudante de Coimbra o sabe fazer. No entanto, há coisas que nunca mudam, as monumentais continuam a ter 125 degraus, o Sr. Luís do Bar das Matemáticas continua com a sua boa disposição, embora se note alguma tristeza em não lhe ser possível dar os seus característicos dois beijinhos e aperto de mão, o meu grupo de amigos continua o mesmo, a minha madrinha continua a ser incrível e Coimbra continua a ser demasiado fria de manhã e quente de tarde e claro, os SMTUC continuam poder melhorar mas persistem em não o fazer.

Estamos em dezembro, vou lanchar com uma caloira, a qual acho muito simpática, aliás, dos poucos caloiros que conheci não existe qualquer razão de queixa. Passados alguns dias volto a falar com essa mesma caloira, até que chega o dia em que me pede como madrinha. É estranho pensar em mim como madrinha, ainda ontem era eu quem estava a pedir para ter uma madrinha. Mas bem, sou uma pessoa de sorte, pois além de ter uma madrinha incrível tenho também uma afilhada espetacular, sendo que por vezes sinto que existe uma troca de papéis uma vez que recebo mais conselhos do que aqueles que dou.

Mais uma época de exames passa e apesar de com algum custo, todas as cadeiras ficam feitas. Nesta fase já vou para os exames mais relaxada, existe sempre aquele nervosismo, mas já existe o lema “tudo se faz, nada fica para trás” muito presente na minha cabeça.

Voltam as aulas e já estamos em março. Neste momento a realidade não é a perfeita, estou em casa dos meus pais, sentada na sala, em confinamento, enquanto escrevo este texto e me relembro de todos os momentos passados desde que me matriculei na Universidade de Coimbra. Recordo os momentos vividos, mas penso ainda mais nos que ficaram por viver. Fica a esperança de que os possa vir a viver agora e que tenham um gosto ainda melhor, uma vez que são tão desejados.

Enquanto escrevo este texto sinto vontade de rir ao recordar os primeiros meses em Coimbra, penso em como as preocupações mudaram, como as prioridades mudam e em como agora é lógico que “Manutenção” seja uma paragem.

Posto isto, à rapariga que tanto chorava numa quarta-feira à tarde, que se sentia sozinha e perdida gostava de dizer “tem calma, tudo vai correr bem, vais adorar”. Hoje também é quarta e também sinto alguma vontade de chorar, mas por bons motivos, pois agora compreendo o clichê de que Coimbra é sinónimo de saudade. Para o ano serei finalista e a saudade já se começa a notar. Como em tudo na vida, também a licenciatura tem o seu fim, mas este fim será maior que os outros, pois aquilo que a licenciatura em Bioquímica me proporcionou e ainda irá proporcionar nada apaga. Coimbra deu-me amigos que levarei comigo para a vida, duas em particular muito especiais que estarão para sempre no meu coração, deu-me uma madrinha que será para sempre uma guia na minha vida, deu-me uma afilhada com quem sei que sempre posso falar, colegas de casa que se revelaram pilares em momentos de maior dor e aflição, pois também existiram momentos maus e ainda bem. No fundo, Bioquímica e Coimbra deram-me o maior bem que posso valorizar, liberdade e confiança para olhar para o futuro. Espero que seja um futuro risonho. Se tu também sentes que ainda estás no início amargo, calma, cada um tem o seu tempo, apenas te posso garantir que tudo o que deres a Coimbra, Coimbra dará em dobro. A todos os que cruzaram e ainda irão cruzar este meu percurso, um sincero “Obrigada”.

Ana Raquel Nossa

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