A pandemia escondida

2 de março de 2020, o dia da confirmação dos primeiros dois casos oficiais positivos de COVID-19 em Portugal. 18 de março de 2020, o dia em que foi decretado o primeiro estado de emergência em Portugal. Ficámos confinados em casa durante meses. Escrevo este texto no final de março de 2021 e parece que vivemos num mundo diferente. Mas será que ainda nos lembramos de como era a nossa vida há dois anos? Em Portugal, ainda estamos (meio) confinados e a luz ao fundo do túnel, a mim, parece-me ainda bastante distante.

2020 foi um ano diferente! 2021 está a ser um ano diferente! Em 2019, os portugueses pesquisavam no Google acerca de “Ângelo Rodrigues”, do “Flamengo” e de “Cameron Boyce”. Em 2020, as palavras mais pesquisadas em Portugal foram: “coronavírus Portugal”, “escola virtual” e “coronavírus”. Já as questões mais frequentes foram “Como fazer pão?”, “Como fazer máscaras?”, “Como fazer desinfetante caseiro?”, “O que é o layoff?”, “O que significa estado de emergência?” e “O que é mitigação?”.

Estamos diferentes! As nossas pesquisas são outras. Pesquisámos sobre pão porque quase todos (arrisco-me a dizer todos?) fizemos nem que fosse uma tentativa de pão caseiro.  Pesquisámos sobre máscaras e sobre desinfetante porque as nossas rotinas mudaram e porque houve alturas em que uma caixa de máscaras era vendida a um preço desproporcional e em que o álcool gel e desinfetante esgotavam em segundos após terem sido repostos nas prateleiras dos supermercados.

O que significa esta diferença em nós? Em que sentido é que 2020 nos transformou?

Historicamente, os anos 20 do século 20 são conhecidos como os “loucos anos 20”, marcados pela prosperidade, pelo nascimento dos fenómenos de massas no cinema e no desporto. A moda mudou: menos corpetes e mais estilo de Hollywood, saias e cabelos mais curtos! No cinema, nasceram nomes como Chaplin e o Gato Félix (primeira personagem de desenhos animados). Na área das artes, brilhava Salvador Dali. O jazz ganhava protagonismo na música. O mundo vivia as consequências da primeira guerra mundial e da gripe pneumónica. Após esta atroz guerra, o mundo deu um salto no sentido de uma maior liberdade na cultura e nos costumes. Evoluímos!

A gripe pneumónica (1918 a 1920), também conhecida como gripe espanhola, foi um dos episódios mais mortíferos da história recente. Vários historiadores questionam o motivo pelo qual foi praticamente esquecida pela maioria das pessoas, levando, inclusive, à publicação dos livros “A Pandemia Esquecida: Olhares Comparados sobre a Pneumonia” e “Centenário da Gripe Pneumónica: A Pandemia em Retrospectiva”. Estima-se que Portugal foi o país da Europa com uma maior taxa de mortalidade associada a esta gripe. Voltámos a falar da gripe pneumónica no ano passado devido à COVID-19. Já na altura o combate à doença foi feito através do encerramento de escolas e da proibição de festas e romarias. Alguns espaços públicos transformaram-se em enfermarias. Todos estes factos nos são bastante familiares, certo?

No que ao século XXI diz respeito, os anos 20 vão ficar marcados pelo início de uma outra pandemia. Uma pandemia que, por sua vez, fez crescer uma outra pandemia silenciosa: os problemas associados à saúde mental.

A saúde mental tem sido uma das temáticas mais abordadas ao longo dos últimos meses. A pandemia chegou e apanhou-nos de surpresa. Confinamento, distanciamento físico, risco de infeção, crise económica e incertezas acerca do futuro. Tudo isto nos deixou em suspenso. A respiração ficou pendente, os planos adiados e os hábitos reajustados ou totalmente alterados. A vida não é a mesma! Mais stress e mais ansiedade. Como?

As crianças e adolescentes trocaram as salas de aula tradicionais por uma sala de aula virtual, por uma televisão e por computadores. Os pais passaram a (tele)trabalhar e as exigências são muitas. Todos os dias nascem novos desafios.

Embora os especialistas acreditem que ainda é cedo para apontar as grandes consequências desta pandemia, não existem dúvidas que o período de confinamento deixará uma marca evidente em cada um de nós.

Um estudo realizado pela Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense revelou que, numa fase inicial da pandemia, quase metade dos portugueses (49.2%) sentiu um impacto psicológico (moderado a severo) do confinamento, sentindo sintomas de depressão, ansiedade e stress exacerbado.

Por outro lado, 25% dos participantes no estudo “Saúde Mental em Tempos de Pandemia” apresentou sintomas moderados a graves de ansiedade, depressão e stress pós-traumático, demonstrando, deste modo, que alterações profundas no quotidiano das pessoas têm impactos na sua saúde mental e no seu bem-estar. O mesmo sucede naturalmente com os profissionais de saúde, que, para além da ansiedade, da depressão e do stress, apresentam sintomas de burnout. No que se refere à população no geral, são os jovens adultos e as mulheres que apresentam estes sintomas de uma forma mais intensa. Relativamente aos profissionais de saúde, os mais afetados são aqueles que tratam diretamente doentes infetados.

Steven Taylor, professor de Psicologia da Universidade da Columbia Britânica (Canadá), criou o conceito de síndrome de stress por COVID-19. Afirma que existem relatos de fobia à gripe (ou fobia relacionada com a gripe) durante a pandemia da gripe espanhola. Adicionalmente, indica que investigadores do vírus Zika, ébola ou gripe suína relatam também este tipo de fobia.

O investigador compara este tipo de fobias a fobias consideradas “típicas”, tal como a fobia a cães. Ademais, entende que esta visão de fobia ao vírus é reducionista, determinando que a fobia vai para além da infeção. Trata-se não apenas do medo de ficar infetado, mas também de todos os pesadelos que este vírus cria, isto é, os pensamentos induzidos pelos vírus.

Este psicólogo desenvolveu um estudo com cerca de 7.000 adultos no Canadá e nos Estados Unidos, através do qual são analisadas as consequências da pandemia de acordo com escalas de stress; este estudo encontrou provas da existência de uma síndrome. Foram identificadas seis coisas: medo de ficar infetado, medo dos impactos socioeconómicos, xenofobia, medo de estranhos, verificações compulsivas e a síndrome de stress traumático. Esta síndrome designa-se “síndrome do stress COVID”. Concluiu-se, ainda, que a severidade dos sintomas aumenta ou diminui segundo o nível de ameaça do ambiente circundante. Trata-se, portanto, de um transtorno de adaptação, não resultando as suas consequências, na maioria dos casos, em problemas crónicos.

2 de Março de 2020, o dia de entrada de Portugal no mundo do referido Coronavírus. 18 de Março de 2020, o dia que determina o início das consequências do confinamento na vida dos portugueses. Ficámos em casa e reduzimos a bolha de interação social. 2020, o ano em que falámos de saúde mental com menos medo.

A saúde mental é um conceito complexo que pode ser definido, de acordo com Maria João Heitor, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM), como um “produto de interações múltiplas, incluindo fatores biológicos, psicológicos e sociais”, sendo “influenciado por diferenças culturais e pela subjetividade de cada um”. Em Portugal, a perturbação psiquiátrica mais comum é a ansiedade (16,5%), seguida da depressão (8%). É importante perceber que “quem vê caras não vê saúde mental”, tal como é mencionado na campanha de sensibilização sobre este tema da companhia farmacêutica Janssen. 2020, o ano que nos abriu portas para falar da saúde mental. Vamos aprender algo com tudo isto e perceber que todos podemos fazer a diferença no combate ao preconceito associado a estas perturbações. Que este louco início dos anos 20 nos ensine que “quem vê caras não vê saúde mental” e que cada um de nós deve dar a cara! Vamos diminuir o estigma associado às doenças mentais. Sim? Claro!

Mariana Laranjo

Porque é que os modelos erram?

Ao longo das últimas décadas temos visto o florescer desenfreado das aplicações de ciências computacionais no mundo real – desde fotografias que ficam bem independentemente da incompetência do fotógrafo até tecnologias de vigilância em massa, o mundo foi tomado de assalto. Por causa disso, nos últimos anos temos sido forçados a olhar cada vez com mais atenção para estas práticas e a considerar a sua perceção para o público geral. Uma das situações a atrair mais atenção tem sido a pandemia COVID-19: da noite para o dia, toda a gente – desde cientistas com décadas de experiência até pessoas que aprenderam a dada altura a fazer um gráfico no Excel – quis ter a sua opinião. Um dos grandes produtos foram os modelos para prever o desenvolver da pandemia – como é que os casos vão aumentar? Onde vai parar o R? O que é o pico da pandemia? O que é um postigo e quando é que as esplanadas abrem? Os modelos tornaram-se em áugures de horrores e esperanças, em ferramentas de decisão. Contudo, por vezes erram. Porquê?

A vida numa folha de papel e o papel das aproximações na biologia

“Que cem flores desabrochem.”

Mao Zedong, revolucionário chinês e fundador do Partido Popular da China

“Não sou só uma e simples, mas complexa e muitas.”

Virginia Woolf, escritora britânica

O campo da modelação biológica – a descrição matemática e teórica de fenómenos biológicos – não é novo. Foi no século XIII que Fibonacci usou a, agora famosa, série de Fibonacci para descrever uma população de coelhos ao longo do tempo. Thomas Malthus, o infame economista britânico, criou modelos para o futuro da população humana na terra considerando um crescimento exponencial no final do século XVIII. Leonor Michaelis e Maud Menten estudaram processos enzimáticos de uma perspetiva dinâmica para chegarem à fórmula da cinética de Michaelis-Menten, o logaritmo que lhes vale agora estadia garantida em qualquer plano curricular de bioquímica. A biologia é composta em grande parte de fenómenos reais e difíceis de analisar que, ao serem simplificados, podem ser quantificados de uma forma abstrata através da sua descrição teórica e matemática – passamos a ter a vida representada numa folha de papel ou, mais recentemente, num chip à base de silício.

No entanto, não são propriamente estes os modelos que agora nos enchem os ouvidos – rodeados pelo clima pandémico, estamos cada vez mais atentos às curvas de casos, ao desenvolvimento do número de reprodução (o famoso R, que quantifica o número de pessoas que cada pessoa infetada infeta), ao efeito comparativo que diferentes medidas de confinamento ou intervenções não-farmacêuticas (INC) têm no decorrer de uma pandemia à escala mundial. É certo que a epidemiologia – a ciência que estuda os padrões e a frequência de eventos que afetam a saúde de uma determinada população – também em nada se assemelhava àquilo que vemos hoje. No século XIX, John Snow (não, não é esse) usou um mapa de Londres para assinalar os focos de contágio de cólera, conseguindo assim identificar a fonte da epidemia, uma bomba de água. Nesta altura pouco podemos dizer sobre a componente teórica da epidemiologia, era, afinal de contas, o nascimento desta área.

Atualmente a epidemiologia das doenças infeciosas e transmissíveis é uma área complexa, governada por uma diversidade de abordagens e focada na descrição de fenómenos complexos de transmissão e caracterização de doenças. Do ponto de vista da modelação e de forma muito genérica, muitas das estratégias usadas tentam quantificar a rapidez com que uma determinada população de indivíduos suscetíveis (S) fica infetada (I) e recupera/morre (R, durante o qual ficam imunes) – nasce assim o modelo SIR. Podemos considerar um modelo mais simples, em que os recuperados ficam de novo suscetíveis, nascendo assim o modelo SIS. Contudo, caminhar na direção da simplicidade leva frequentemente a explicações mais fracas e/ou redutoras – podemos então considerar que o estado R se divide em recuperados (novamente R) e mortos (D, do inglês deceased) e nasce assim o modelo SIRD. Podemos ainda acrescentar um período de incubação, durante o qual consideramos que o indivíduo ficou exposto (E) à infeção – nasce assim ainda outro modelo, o SEIR. Podemos ainda considerar que, algum tempo depois da recuperação, um indivíduo volta a ficar infetado, nascendo assim o modelo SEIRS. Reparem que o nome de cada modelo revela a trajetória de cada indivíduo numa circunstância em que a doença circula livremente. Contudo, quando incluímos vacinações em grande escala acrescentamos uma nova transição relevante: de suscetível para recuperado. Temos ainda ritmos de transição distintos entre cada estado consoante as terapias disponíveis, confinamentos implementados, INC (como a recomendação de máscaras e lavagem das mãos regular), demografia da população e disponibilidade dos serviços médicos – isto se nos focarmos em fatores quantificáveis (os fatores não quantificáveis, como a adesão da população a determinadas medidas ou aspetos culturais, são quase impossíveis de quantificar a uma escala nacional). De um fenómeno relativamente simples de compreender – alguém infeta outra pessoa – nasce um comportamento emergente com uma quantidade não quantificável de fatores, que são aproximados por uma quantidade crescente de métodos: de uma semente desabrocham centenas de flores.

Por norma, quando falamos em modelos matemáticos da COVID-19, estamos a referir-nos a uma abordagem semelhante a/ou baseada nas que foram descritas no parágrafo anterior. Contudo, a pergunta que se impõe continua por clarificar – porque é que erram? São os modelos que estão errados ou é a sua aplicação por cientistas que está incorreta? A resposta é complicada – algo que pode não agradar a quem se manifesta politicamente através de jogos de culpas. Mas prossigamos.

Posso não saber tudo mas posso saber o que não sei – incertezas

“Por muito bem que perceba algo, a minha compreensão só será uma fração infinitesimal de tudo aquilo que quero perceber.”

Ada Lovelace, matemática e escritora inglesa, autora do primeiro algoritmo a ser usado num computador.

“Há conhecidos conhecidos; há coisas que sabemos que sabemos. Também sabemos que há desconhecidos conhecidos; isto é, há coisas que sabemos que não sabemos. Mas também há desconhecidos desconhecidos – aquilo que não sabemos que não sabemos.”

Donald Rumsfeld, antigo secretário da defesa dos EUA.

Quando usamos um modelo para quantificar um determinado fenómeno biológico estamos, por definição, a aproximar um fenómeno complexo a algo que conseguimos medir. Por exemplo, se eu calcular quanto mede, em média, uma pessoa em Portugal medindo 500 pessoas que eu conheça – fingindo que eu conheço 500 pessoas – vou estar a cometer alguns erros de aproximação. E se eu conhecer muitas pessoas altas? A minha estimativa ficará então enviesada – o valor para a média de alturas que eu estimo usando uma amostra será diferente do verdadeiro valor da população.

O teorema do limite central (TLC) – um dos teoremas fundamentais da estatística – diz-nos que a aproximação de uma média é menos incerta quando o tamanho da nossa amostra é maior. Sem problema – supondo que eu sei que a média da minha amostra está errada, posso simplesmente medir pessoas que veja na rua (depois de lhes perguntar se o posso fazer, obviamente). Logo por azar a Convenção de Pessoas Invulgarmente Altas está a acontecer na cidade onde eu vivo, o que leva a que a minha amostra fique ainda mais enviesada. Isto prova que o TLC está errado? A resposta é não, apenas prova que eu me esqueci de uma das suposições do TLC: quando construo a minha amostra, devo certificar-me que a minha amostra da população é aleatória. As pessoas que eu conheço não são uma amostra aleatória, tal como as pessoas que vão à Convenção de Pessoas Invulgarmente Altas. É extremamente fácil deixarmos que um modelo nos “engane” quando nos esquecemos de respeitar as suas suposições.

Os modelos de epidemiologia têm suposições também – o modelo SIR, por exemplo, assume que há uma mistura homogénea de pessoas infetadas e suscetíveis, por exemplo, e outros modelos epidemiológicos assumem que INC atuam de forma linear e mais ou menos específica. É difícil que isto seja verdade – as pessoas doentes têm tendência a isolar-se e as pessoas suscetíveis têm tendência a afastar-se de pessoas que estejam infetadas, as INC não levam necessariamente a alterações lineares. Contudo, os modelos epidemiológicos – consoante os ajustes adequados – tendem a produzir estimativas que aproximam o mundo, mesmo quando algumas suposições não são exatamente verdade. Para fazerem isto englobam alguma quantidade de incerteza nas suas estimativas – este grau de incerteza não é mau porque nos permite quantificar com alguma precisão aquilo que efetivamente sabemos, abrindo alas à quantificação daquilo que sabemos que não sabemos. Atingimos assim um equilíbrio poderoso que permite que peritas e peritos aconselhem a classe política e responsáveis por saúde pública ao usarem modelos que são corretos o suficiente para criar cenários hipotéticos.

No famoso relatório 9 do Imperial College London, havia uma previsão para entre 400.000 e 550.000 mortes só no Reino Unido. Alguns negacionistas da pandemia pegam nesse relatório, abanam-no, enquanto batem no peito e dizem com as bocas cheias de fel e a cabeça cheia de nada: “se estes modelos estão assim tão corretos onde estão as mortes?! Isto é tudo uma PALERMIA (um dos meus neologismos preferidos)”. Bem, caro negacionista, percorrendo o relatório com os olhos, numa atividade melhor descrita como “ler”, pode ser contatada a apresentação de cenários distintos – se houver isolação de casos, quarentena de casas com casos de covid-19 e distanciamento social da população de fora intermitente (medidas adotadas pelo Reino Unido) esses 400.000-550.000 rapidamente, como que por magia, se transformam em 47.000-120.000. Um número terrivelmente alto, ainda assim. Um número que agora peca por ser insuficiente para quantificar o número de mortes por COVID-19 no último ano no Reino Unido – mais de 120.000. As previsões não acertaram, é certo, mas, tal como os modelos, as INC não são exatas – há um nível variável de adesão por parte do público, motivado pela falta de clareza na comunicação governamental, pela falta de explicações para medidas, pela frustração de estar confinado após algumas semanas ou meses. Fora do mundo da estimativa exata, o comportamento humano dá-nos razões para querermos quantificar a incerteza.

O lixo não se perde, transforma-se

“Estamos a encher as pessoas de informação. Precisamos de a passar por um processador. Um humano tem de tornar essa informação em inteligência ou conhecimento. Esquecemo-nos que nenhum computador irá fazer uma pergunta nova.”

Grace Hopper, criadora da primeira linguagem de programação intuitiva e pioneira da computação.

“Em duas ocasiões perguntaram-me “diga-me, Sr. Babbage, se puser na sua máquina os números errados, ela diz-nos a resposta certa?” (…) não sou capaz de compreender o tipo de confusão de ideias que pode provocar uma questão assim.”

Charles Babbage, inventor do primeiro computador mecânico.

Outro aspeto dos modelos que ainda não referimos e dos quais eles dependem quando são aplicados ao mundo real são os dados, esse chavão eterno que simboliza o conhecimento objetivo. Contudo, será um dado elementar para registar o decorrer da pandemia como o número de casos assim tão objetivo? Se olharmos de forma agnóstica para a forma como a pandemia COVID-19 se desenvolveu em Portugal vemos um aumento brutal na primeira vaga, variações periódicas semanais, plateaus. Será tudo isto real? Comecemos por considerar o efeito do fim de semana, durante o qual são feitos menos testes, levando a variações que não representam oscilações reais nos contágios. Consideremos ainda aumentos ou alterações na capacidade e regime de testes, que inevitavelmente levam a alterações no número de casos registados, sendo que a isto junta-se ainda a possibilidade real de falsos positivos e falsos negativos. Algumas destas variações são fáceis de colmatar – para o efeito do fim semana basta assumirmos que durante o fim de semana esperamos apenas uma fração dos casos esperados. As outras fontes de variabilidade são mais difíceis ou até mesmo impossíveis de quantificar e contribuem para a diferença entre modelo e realidade. Através da quantificação da incerteza que já referi conseguimos lidar com parte desta variação, mas parte dela não é quantificável – os modelos acabam por “falhar”. Ou melhor, os modelos não conseguem acompanhar a alteração nas suposições iniciais, como um ritmo e regime constantes de testes (podemos ainda assim incorporar esta informação no nosso modelo). Por outras palavras, se elaborarmos um modelo mal formulado ou que não é capaz de incorporar fontes de variação ou a incerteza associada às mesmas não podemos esperar bons resultados.

Posto isto, podemos ainda falar num modelo que falha? Sim, mas não podemos ficar por aqui – apontar o dedo a alguém é um exercício catártico, mas, em última análise, inútil; se não conseguirmos compreender a fonte do erro o progresso é impossível. Os modelos falham porque as suposições iniciais estão erradas, sejam essas suposições referentes aos dados que temos ou à maneira como as pessoas circulam pelo país. Essas suposições vêm das pessoas que elaboram os modelos, mas também vêm da literatura científica que foi produzida até à data, sempre em constante atualização e, em momentos-chave, em revolução acesa. Ultimamente, a grande responsabilidade de quem faz investigação e produz conhecimento científico é fazer não só perguntas, mas sim as perguntas certas – algo melhor demonstrado no épico da sci-fi pop Hitchhiker’s Guide to the Galaxy de Douglas Adams. Nele, perguntam a um computador superpoderoso qual é a resposta para o universo, ao que ele responde, depois de anos de cálculos: “42”. Ao ser feita uma pergunta demasiado vaga e sem conseguirmos restringir o campo de repostas possível, o computador deu a resposta mais exata que conseguiu para esse problema. Também a modelação no contexto epidémico sofre do mesmo problema – a resposta que um modelo nos dá não é à simples pergunta “como é que a pandemia vai progredir?”, mas sim à pergunta (mais complexa) “assumindo que as minhas suposições são verdadeiras e que o passado pode ser usado para perceber o futuro, como é que a pandemia vai progredir?”

A escolha das suposições, em última análise, é uma escolha que pode chegar a ser filosófica e subjetiva, mas que é também guiada pelo conhecimento disponível. Não são muitas as vezes em que um modelo pode ser considerado superior antes de ser posto à prova-os dados e a pergunta que queremos responder (devidamente feita) ditarão a melhor abordagem. Os modelos melhoram através de um processo iterativo e científico, com o aumento dos dados e conhecimento disponível. No entanto, é sempre importante manter em mente uma citação de autoria imprecisa: “é difícil fazer previsões, especialmente quando se trata do futuro”.

Considerando tudo isto, os modelos não perdem a utilidade – apenas têm uma utilidade que deve ser contextualizada. Com efeito, podemos comparar diferentes cenários pandémicos e tomar as melhores decisões na melhor altura. Enquanto que no início da pandemia as ações tomadas foram largamente preventivas, o que vemos a acontecer agora é uma série de governos a manobrarem e a balançarem uma miríade de fatores que incluem não só a saúde pública, mas também o estado psicológico e social da sociedade e a economia. Para isto, contam com peritas e peritos que combinam modelos teóricos e empíricos (que usam dados) e conhecimento da área para tomarem, pelo menos, decisões aceitáveis. Nem sempre corre da melhor maneira, mas a rede complexa de interações entre os vários eixos de uma sociedade leva a que tenha de haver compromissos: uma opção apenas se torna na melhor opção quando definimos prioridades – é preferível que haja um menor número de mortes ou um impacto económico mais ligeiro? Estas questões são, ultimamente, do domínio da política, pelo que não compete a este artigo respondê-las. Contudo, podemos indagar sobre o que acontece aos resultados dos modelos – e da sua incerteza – quando entram na esfera pública.

Os factos, ideologia e informação

“Não pode haver uma só história. Há apenas diferentes maneiras de ver. Portanto, quando eu conto uma história, conto-a não como uma ideóloga que quer pôr uma ideologia absolutista contra a outra, mas sim como uma escritora que quer partilhar a sua maneira de ver.”

Arundhati Roy, escritora e ativista indiana

“Fazemos para nós próprios imagens dos factos.”

Ludwig Wittgenstein, filósofo austro-britânico

“Não consegues polir um cagalhão, mas podes cobri-lo de brilhantinas.”

Autor desconhecido

Como já referi, uma medida poderá ser melhor ou pior consoante as prioridades que definimos – isto é motivado (também, mas não só) ideologicamente. Enquanto que certos quadrantes políticos irão ser maiores adeptos da manutenção da economia e da sua normalidade e colocam nessa manutenção a chave para que a manutenção da qualidade de vida seja mantida, outros pedirão que a mesma pare para que sejam salvas vidas. Nenhuma destas escolhas é motivada puramente por evidência, apenas por uma visão diferente da política – no primeiro caso, é elogiada a igualdade e liberdade enquanto expressões individuais dos meios materiais de cada indivíduo e da sua capacidade de participar no mercado. No segundo caso é elogiada a igualdade e liberdade enquanto a capacidade que um individuo tem em viver uma vida em que as suas condições – materiais, sociais, e não só – ditem o seu direito a uma existência digna.

Algures no meio, algures mais nos extremos, algures perdidos ou até mesmo algures fora do espectro que mencionei, toda a gente vai ser influenciada até certo ponto por aquilo em que acredita quando interpreta um número, um dado, uma figura – assim é a ubiquidade da ideologia. Pedidos por uma política, constituição ou medidas contra a pandemia covid-19 “sem ideologia” são pedidos vazios – pretendem apenas enaltecer uma falsa visão de que há política sem ideologia, assumindo que o conjunto de princípios que rege a sociedade ocidental não é ideológico, assumindo que há um estado fundamental que existe para lá da história; de facto, consoante o objeto de estudo que tenhamos, pode ser relevante, irrelevante ou contraproducente assumir que o mundo sempre foi assim. Numa história popular, um peixe velho diz a dois peixes mais novos: “Olá! Como está a água?” e continua a nadar. Um dos peixes mais novos olha para o outro e pergunta: “O que raio é água?” – se nascemos, crescemos e vivemos enterrados rodeados por uma ideologia dominante pode ser difícil reconhecê-la como ideologia. Deixemos, contudo, estas considerações durante o resto deste texto: falta-nos ainda perceber quando é que os resultados de um modelo se convertem numa questão de opinião.

Finjamos por um parágrafo que somos uma equipa de modeladores e epidemiologistas.

Quando calculamos um valor para o R em Portugal, estimado em a=1, mas provavelmente entre b=0,9 e c=1,1 (um intervalo que contém a) é só isso que ele é. Um conjunto de três números, o primeiro a oferecer uma estimativa do “valor esperado” e os outros dois a oferecerem um intervalo de confiança (uma medida de incerteza). Para o compreendermos melhor temos de o contextualizar temporalmente – queremos saber se faz parte de uma tendência crescente ou decrescente, ou se tem estado relativamente estável. Para além disto, há também interesse em comparar este valor com aquele que observamos noutros países – portanto para Espanha teremos um outro conjunto de valores que correspondem a a, b e c. Podemos até comparar para ambos os sítios a maneira como estes valores evoluem, extraindo assim informação sobre a aceleração da pandemia. Contudo, não nos podemos esquecer que todos estes cálculos envolvem suposições. Adicionalmente, quando queremos comparar medidas concretas implementadas em vários países e o seu impacto relativo no R, temos de aproximar uma série de coisas – temos de supor que as medidas terão um impacto semelhante em qualquer país em que sejam aplicadas, podemos ter de supor não só que cada país é homogéneo, mas que todo o conjunto de países é homogéneo, podemos ter de supor que o comportamento e adesão às medidas de todos os indivíduos em todos estes países é semelhante. Temos, por norma, de supor bastantes coisas.

Este complicado exercício de suposição não é errado, mas requer uma capacidade de oferecer explicações para, por exemplo, o porquê de o fecho das escolas ter um impacto tão considerável no R. Dentro de uma esfera de especialistas, quem percebe do assunto pode discuti-lo sem que haja más interpretações – poderá haver discórdias, mas em grande parte dos casos serão suportadas por dados ou hipóteses legítimas geradas por outras pessoas envolvidas no processo de investigação. Isto acontece porque em qualquer caso haverá sempre uma parte significativa da “verdade científica” que é inacessível – a pesquisa oferece-nos estimativas, mas elas são apenas isso, estimativas, que serão validadas (ou não) pela realidade observável ou por futuras gerações de jovens cientistas.

Até aqui há discórdias, mas não há, normalmente, questões ideológicas. Isto é algo que se verifica em maior parte dos casos, mas é importante manter presente na memória que em tempos a ciência ajudou a perpetuar crenças racistas e machistas e ajudou a justificar genocídios. Estes são exemplos claros e boçais de quando a “ciência” esteve ao serviço da ideologia, como uma arma empunhada por homens e instituições execráveis. Contudo, para este caso, vamos considerar o nosso caso simples – dados, modelo, resultado – em que a interpretação subjetiva dos factos tem pouco por onde existir. E claro, neste caso, haverá discórdias relativamente aos métodos aplicados e às suposições usadas, mas é por isso que a variedade de abordagens legítimas pode ser importante na ciência – permite-nos construir uma ideia mais completa daquilo que é a realidade quantificável. Ao passarmos para o domínio público – através de conferências de imprensa, reportagens, entrevistas a especialistas, etc. – é que começamos a ver um fenómeno de simplificação brutal. De forma a tornar uma mensagem o mais abrangente possível, temos de simplificar alguns aspetos técnicos e teóricos. Isto, por norma, não tem mal, mas cria situações em que a comunicação é frequentemente ambígua – por exemplo, quando falamos no “pico da pandemia”, a que é que nos referimos, em concreto? Conseguimos realmente estimar o dia específico ou apenas um intervalo de dias? Estamos a falar do pico de infeções, de contágios, de casos ou de mortes? Isto cria a possibilidade de que sejam feitas interpretações, que podem ser informadas por conhecimento na área ou egoístas, e que correspondam à realidade que mais convém à nossa narrativa interna, à nossa ideologia temos toda uma ilusão montada por nós a partir das simplificações que ouvimos nos meios de comunicação social e através da classe política ou outras pessoas. Outra frequente miragem vem da reportagem diária do número de casos – cria-se uma ilusão de que a variação que medimos por dia é relevante e absoluta, quando o que nos interessa são tendências que duram semanas e não nos é dito quantos testes foram feitos.

Neste crivo de informação pelo qual o conhecimento passa resta pouco de científico – apenas o que cada especialista considera suficiente – mas muito de especulativo; ficamos reféns das nossas imagens do mundo, reféns da história que cada especialista nos quer contar. Talvez seja uma especialista em virologia e, portanto, tente transmitir-nos uma mensagem mais focada na sua área, ou talvez seja uma médica pneumologista e crie para nós uma imagem diferente. Por vezes há até modelos contraditórios, deixando-nos perdidos neste universo de resultados concretos com pouco contexto. Por vezes o mesmo resultado pode ter alguma ambiguidade, abrindo portas a interpretações que favorecem que as faz.

Por isso, quando um modelo erra é difícil percebermos o porquê – não sabemos grande parte das decisões que foram feitas para chegar à estimativa final, apenas que está mais ou menos certa (isto quando temos acesso sequer às estimativas geradas pelo modelo). Uma classe política que se preze minimamente deve disponibilizar detalhes técnicos e científicos sobre os modelos que usa, deve esforçar-se por tornar disponíveis dados, algoritmos e modelos em tempo útil, deve colocar-se numa posição de escrutínio e deve exigir tudo isto a quem consulta. É gratificante ver que a política recorre à ciência para tomar as suas decisões, mas não é gratificante ver que, ao fazê-lo, participa num processo de ocultação da ciência que usa, resumindo tudo a elaboradas apresentações de difícil acesso e pouca documentação. Esta linha de pensamento, que vai de “especialistas disseram que X é bom” a “nós fizemos X” num só movimento não é capaz de criar confiança pública nas instituições científicas. Claro que, se as medidas resultarem num bom desfecho, as pessoas estarão mais dispostas a confiar em quem toma decisões e na ciência em que se apoiam. Mas e se isso não acontece? Como é que nós, cientistas interessados em informar o público, podemos explicar porque é que os modelos erram quando não os podemos ver? Como é que impedimos alguém de interpretar dados de forma indevida quando não há meios claros de o impedir? Como é que podemos reverter o efeito nocivo das teorias da conspiração quando o conhecimento é inacessível? Há quem acredite que há um dever inerente à profissão científica que nos coloca a todos – investigadoras e investigadores – numa posição em que devemos permitir que aqueles à nossa volta percebam melhor o mundo. Eu acredito nisso e gostava de poder fazê-lo mais frequentemente. Para isso, contudo, preciso de maior transparência e de uma política de acesso aberto sobre os painéis de especialistas num formato que permita o escrutínio. Já é feito – até certo ponto – por algumas instituições com membros que aconselham o governo, como o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. No entanto, é também preciso que haja um esforço à larga escala por educar todas e todos quanto à melhor maneira de analisar estes relatórios, quanto às suas limitações. É importante que as pessoas confiem na ciência, mas também é importante que a ciência se converta em algo inflexível e dogmático ou, por outro lado, em algo que é distorcido e moldado até dar uma resposta que não tem. É preciso que percebamos que, tal como Carl Sagan disse, “a ciência é mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimento”. Mais do que um conjunto de verdades, a ciência é um processo que tenciona revelar quantidades cada vez maiores do mundo. Para isso, temos de deixar que ela nos guie.

José Guilherme de Almeida

2020, o ano que nos fez pensar sobre ciência

Ao falar da atualidade mundial, a COVID-19 é um tema incontornável. Afinal de contas, esta doença maldita condiciona as nossas vidas há mais de um ano, tempo demais! Mas façamos um exercício simples e olhemos para os números. À data em que escrevo esta crónica, em finais de março, o total acumulado de casos confirmados de COVID-19 ascendia a cerca de 130 milhões, que se traduzem em cerca de 2.8 milhões de mortes. Em comparação, na afamada gripe espanhola, as estimativas apontam para 500 milhões de casos que resultaram num número de mortes que alguns especialistas menos conservadores dizem ter sido de 100 milhões de pessoas. É certo que a pandemia de COVID-19 ainda não acabou e parece longe disso, mas creio que é seguro dizer que o impacto funesto desta pandemia ficará felizmente muito aquém de outras no passado.

Mas como explicar tamanha discrepância de fatalidades entre as duas pandemias supracitadas? Certo é que há diferenças naturais intrínsecas entre o coronavírus que causa a covid-19 e o vírus influenza que causou a gripe espanhola, mas isso não explicará tudo. A resposta correta está na ciência, isto é, no conhecimento muito mais alargado que hoje temos sobre todos os aspetos deste mundo. São os avanços científicos que permitem que os cuidados de saúde primários sejam cada vez mais acessíveis e abrangentes. É a tecnologia que a ciência possibilitou que permite que a higiene seja hoje um dever de cada um e não apenas um luxo das elites. Foi a ciência quem trouxe terapias cada vez mais eficientes e eficazes. E claro, algo mais específico desta pandemia, foi a ciência quem nos deu em tempo recorde armas para a contra-atacar e para evitar que se tenha de expor toda a população a este desapiedado vírus.

Perante a evidência, acaba por ser um pouco paradoxal que a ciência seja o parente pobre das políticas governamentais. Eu percebo, ela não dá resultados a curto-prazo, por isso uns milhões nela aplicados seduzirão sempre menos eleitores que os mesmos milhões aplicados noutros setores, mas a realidade é que foi nela que alguns países se fiaram para se tornarem em potências económicas, sendo que a Coreia do Sul e Israel são os dois exemplos mais bem-sucedidos. E é também paradoxal que muitos órgãos de decisão optem por ignorar aquilo que os cientistas dizem, seja porque não lhes dá jeito aceitar a realidade, seja porque não querem acreditar, ou seja, simplesmente, por pura ignorância. Recentrando o debate na COVID-19, há dois exemplos que ilustram na perfeição esta premissa. 1) Em 2015, um artigo publicado na revista Nature Medicine mencionava os perigos de um grupo de coronavírus que se encontrava a circular em morcegos (para ler, pesquisar pelo seguinte doi: 10.1038/nm.3985). O guião de “cientista ignorado que acaba por prever um futuro catastrófico” é digno de filme de ficção científica, mas dá que pensar. O que seria o mundo hoje se o trabalho destes cientistas tivesse sido efetivamente considerado? 2) A posteriori, embora ainda reine a discórdia sobre qual a forma mais correta de atacar a COVID-19, uma das poucas coisas consensuais é que as políticas aberrantes de Trump e Bolsonaro são tudo aquilo que não se deve fazer. O que é que ambos têm em comum? Ambos despreza(ra)m a ciência e os seus protagonistas. Aliás, dado o descontrolo da pandemia no Brasil (à data que escrevo) e dado que os vírus são capazes de se mutar com frequência, a atitude passiva/contraprodutiva do presidente brasileiro é um autêntico risco para o mundo inteiro, pois se aparecer um “novo” coronavírus derivado deste, mas que seja suficientemente diferente, há o risco sério de o mundo voltar à estaca zero nesta guerra global.

O principal combustível que alimenta esta fação de negacionistas é a incompreensão da ciência. Desconhecimento efetivo dos assuntos, mas também incompreensão acerca do método científico. Um bom cientista possui obrigatoriamente duas características: humildade e criatividade. Assim, e principalmente quando o grau de incerteza é grande (como agora) a criatividade dos cientistas leva a que haja uma série de opiniões diferentes sobre determinado assunto. Porém, à medida que as teorias são testadas, há a humildade de perceber quando é que determinada teoria é errada (ou menos boa), que natural e consequentemente é abandonada. Foi nessa ótica que os ingleses e os suecos desistiram das suas estratégias peculiares de combate à pandemia. Este aspeto é uma das melhores coisas da ciência. A ciência nunca será consensual, mas o que a move é a procura pelo consenso, sempre assente em evidências palpáveis. A procura pelo conhecimento é um processo que será sempre inacabado, mas todos os dias o nosso conhecimento aumenta.

Eu comecei este texto fazendo um paralelismo entre a pandemia que vivemos e a gripe espanhola. Permitam-me fazer uma afirmação corajosa, que é feita apenas e só por convicção: se a COVID-19 tivesse aparecido há 100 anos, sem que o mundo possuísse os avanços científicos do último século, a death toll não se firmaria em números tão modestos. Assim, a maior lição que a COVID-19 nos deixa é que a ciência, a inovação e o conhecimento são sempre a melhor resposta que a sociedade pode dar contra desafios exigentes como este, mesmo que o adversário seja novo e desconhecido. A evolução tecnológica da sociedade tem sido tão rápida que quase passa despercebido o papel da ciência, mas é minha esperança que esta pandemia seja o clique que faltava para abrir os olhos a muitos sobre o seu papel e sobre o seu potencial enquanto agente transformador do mundo. Espero assim que a COVID-19 tenha como consequência políticas reformistas e vanguardistas onde a ciência seja protagonista e não (como habitualmente) mera nota de rodapé, usada com o propósito uno de credibilizar decisões aos olhos do povo. Talvez eu seja um sonhador, mas como se costuma dizer, o sonho comanda a vida.

Cláudio Costa

À Conversa com a Professora Dra. Irina Moreira

A Professora Doutora Irina Moreira licenciou-se em Bioquímica em 2003 e doutorou-se em Química em 2008 na Universidade do Porto. Concluiu um pós-doutoramento na área de Biofísica em Nova York. Em 2015 iniciou seu próprio grupo de investigação no CNC. Atualmente é professora auxiliar na UC. É também coordenadora do (novo) mestrado em Biologia Computacional do DCV.

MJ – Recuando até ao início: como surgiu o interesse pela ciência? E pelas ciências computacionais?

Sou uma pessoa metódica, organizada e assertiva e, também por isso, o meu interesse pela ciência. A ideia da constante evolução pessoal e da procura de saber mais e melhor foi sempre o meu foco e a minha ambição. Desde muito cedo que o funcionamento da vida me fascina e sempre vivi interessada em entender melhor o universo. Penso que a minha primeira paixão foi a astrobiologia, a procura de vida para além da Terra. As ciências computacionais surgiram ainda durante o curso de Bioquímica e foi uma consequência do meu desejo permanente de saber mais e melhor, encontrar respostas que não se obtêm nem a olho nu, nem em laboratório.

MJ – Qual o caráter translacional da sua investigação? Ou seja, como é que a sociedade pode ver as aplicações do seu trabalho?

A Biologia Computacional é uma área translacional, porque integra conhecimento detalhado de entidades moleculares (e.g.: DNA, RNA, proteínas, pequenas moléculas e lípidos) com informações variadas de aplicação na indústria farmacêutica, nomeadamente no desenvolvimento de novos fármacos e/ou na caracterização de novos alvos moleculares.

MJ – Na sua biografia (no site Moreira Lab) afirma que o seu objetivo é tornar-se líder na sua área de investigação, nomeadamente na interface entre as ciências computacionais e a biologia estrutural. Conseguia “desconstruir” esta interface para o público menos informado?

Atualmente, no meu grupo, temos investigadores e alunos com formação e interesses distintos. Desde o desenvolvimento de algoritmos variados utilizando ferramentas de Inteligência Artificial (IA) como a análise estrutural e funcional de complexos proteína-proteína, nomeadamente envolvendo sistemas membranares. Assim, através desta abordagem multidisciplinar, que envolve elementos de ambas as áreas, conseguimos responder com maior eficácia e rapidez às perguntas que os ensaios biológicos não encontram resposta.

MJ – Qual considera que tenha sido o ponto de viragem para as ciências computacionais?

O ponto de viragem foi o projeto de sequenciação do genoma humano

pois iniciou uma era de criação massiva de dados na Biologia para o qual foi necessário educar toda uma geração de investigadores nas várias metodologias a ser empregues na análise de big-data. Assim, as ciências computacionais têm vindo a ganhar dimensão à medida que aumenta a necessidade de respostas rápidas, nomeadamente de carácter preditivo, bem como da caracterização mais atómica dos vários sistemas moleculares.

MJ – Acha que a pandemia fez aumentar o interesse da população pelas ciências computacionais?

A pandemia acelerou a procura destas áreas que conseguem produzir ciência “à distância”. Os sucessivos confinamentos e a limitação de acesso aos laboratórios levaram a que as ciências computacionais se tornassem mais apelativas aos alunos e aos professores/investigadores. Uma das consequências desta pandemia foi a transformação digital das próprias universidades.

MJ – Qual foi o impacto da pandemia no seu trabalho? Foi um impacto positivo ou negativo?

No meu trabalho, a pandemia teve o impacto semelhante ao que ocorreu em todas as famílias com filhos menores em idade escolar, ou seja, a produtividade foi afetada pelo acréscimo de outras diferentes tarefas a desempenhar ao longo do dia. No entanto, a facilidade de continuarmos a conseguir trabalhar a 100% à distância, com o acesso ao cluster de alto desempenho (HPC) e utilizando plataformas de comunicação online, possibilitou aos alunos e investigadores do grupo o regular intercâmbio de ideias e materiais, interajuda e colaboração e, como tal, a nossa produção científica não sofreu grande impacto.

MJ – Ainda dentro da investigação, acha que por vezes a pressa que se tem em obter resultados e reconhecimento tem prejudicado a ciência?

Como em todas as profissões, a pressa será sempre inimiga da perfeição. Portanto, sim, a mentalidade de publish-or-perish, a necessidade do reconhecimento e de ser o primeiro a encontrar respostas levam por vezes à escolha de caminhos errados na investigação e à promoção e proliferação de investigações pouco criativas e de reduzida qualidade.

MJ – Em que projeto gostou mais de trabalhar e porquê?

Um dos projetos que gostei de trabalhar foi o “Deep learning in cancer drug discovery: a pipeline for the generation of new therapies (CRADLE)”, pois permitiu-me criar as condições para uma consolidação de conhecimentos e técnicas de IA por membros do grupo. Este projeto tem possibilitado a criação de novos modelos computacionais que vão desde as novas metodologias de Text-Mining, a algoritmos capazes de prever a existência ou não de sinergia de fármacos anticancerígenos. É fundamental sentir que a investigação não é estanque e que há uma constante evolução.

 MJ – O que a motivou a fundar/desenvolver um mestrado em Biologia Computacional na UC? Porque acha que esta área estava em falta? Quais foram as dificuldades que encontrou ao envolver 5 departamentos da FCTUC num só mestrado?

O desenvolvimento deste mestrado está em consonância com a minha visão multidisciplinar e agregadora das ciências computacionais. Um dos meus objetivos é levar os alunos a pensar mais além utilizando novas ferramentas. Este mestrado permite uma melhor preparação para enfrentar os novos desafios da ciência nas próximas décadas, a necessidade de conhecer e empregar técnicas de tratamento de big-data e de IA, conhecimento que está em fase exponencial de procura na indústria farmacêutica. Sem dúvida que é um desafio o envolvimento de diferentes departamentos, mas no meu caso faz parte do dia-a-dia pois lidero um grupo também ele multidisciplinar.  No entanto, o facto do MBC envolver maioritariamente professores recém-contratados pela UC, todos envolvidos na Summer School in Computational Biology, a decorrer com sucesso há já uns anos na UC, facilitou todo esse processo. Acrescento ainda que acredito que não se faz o caminho isoladamente, sendo muito enriquecedor aglutinar o que de melhor em cada área contribui para um objetivo comum: formar alunos motivados, curiosos e empreendedores.

MJ – Quais são as suas perspetivas futuras para a sua área de investigação? E para si e para o seu grupo?

A indústria farmacêutica e o desenvolvimento de novos medicamentos implicam decisões mais bem informadas no início do processo, o que significa uma identificação mais robusta e rápida dos candidatos a fármaco, mais direcionados para os ensaios pré-clínicos e clínicos. Tal permitirá reduzir o risco de falha dispendiosa em estágio final, melhorar a segurança dos ensaios clínicos e aumentar as hipóteses de entrada no mercado de sucesso. Iremos aproveitar o boom e a disponibilidade de dados, software/hardware mais fiável para produzir algoritmos e métodos capazes de prever e caracterizar novos alvos moleculares. Assim, pessoalmente, irei continuar a dar o meu contributo para a sociedade, enquanto cientista e docente, sempre com o objetivo de encontrar respostas e soluções rápidas aos problemas e proporcionar formação aos alunos para que sejam capazes de aceitar os constantes desafios do mundo em que vivemos.

MJ – Tem algum conselho para dar ao principal público da mRNA – os estudantes de Bioquímica?

Um conselho será que percebam a importância das competências digitais e que embarquem rapidamente na era digital. A mensagem final é que sejam curiosos. A curiosidade permite criar, crescer e aprender! E isso, em qualquer área científica, é fundamental.

Maria João Silva

Consequências dos microplásticos na vida humana

Entre as grandes causas dos problemas ambientais do mundo estão a poluição e o uso excessivo de plástico. A produção deste último tem vindo a aumentar ao longo dos anos e, embora a maior parte da população já esteja consciencializada para a importância da sua reciclagem, há ainda um grande desconhecimento acerca das suas consequências ambientais.

O principal problema do plástico é a nossa incapacidade de o destruir e eliminar do planeta. Entre 8 e 12 milhões de toneladas de plástico são despejadas nos oceanos por ano o que leva a um impacto enorme na vida marinha, e de algumas aves que acabam por se alimentar destes resíduos. No entanto, não é só nos outros animais que são encontrados plásticos, pois uma equipa de investigadores detetou microplásticos nas fezes de humanos.

Mas afinal o que são microplásticos? Os microplásticos são partículas microscópicas, com menos de 5 milímetros, que resultam da fragmentação do plástico e que contribuem para a poluição do meio ambiente, uma vez que são facilmente transportados pelo vento, chegando rapidamente aos oceanos. Estes fragmentos chegaram instantaneamente ao ser humano, pois estão presentes em embalagens, roupa e outros produtos à base de plástico que utilizamos no nosso dia-a-dia, mas também podem ser encontrados no ar que respiramos e na comida.

Embora ainda não sejam totalmente conhecidas as consequências que advêm da presença de microplásticos na nossa cadeia alimentar e no nosso corpo, alguns estudos recentes encontraram resíduos dos mesmos na placenta humana. Estas partículas passam deste modo para o feto, podendo causar problemas no seu desenvolvimento.

Para perceber melhor as consequências destes compostos no nosso organismo, é necessário conhecer os mecanismos fisiológicos relacionados com a sua deposição.

Quando os microplásticos são inalados, ocorre a sua deposição, que depende não só das propriedades destes compostos, mas também dos pulmões de cada pessoa. Muitas das substâncias tóxicas que são inaladas conseguem ser eliminadas através dos cílios e do muco, e, por isso, nunca chegam aos pulmões. No entanto, os plásticos têm uma área de superfície relativamente grande o que dificulta a sua remoção, sendo assim encontrados nos pulmões.

A inalação do ar poluído está associada a doenças cardiovasculares e pulmonares, uma vez que causa inflamação devido à resposta imunitária e libertação de citocinas e espécies reativas de oxigénio contra as partículas presentes no ar. Devido a estas possíveis consequências para a saúde humana, já foram adotadas estratégias pela União Europeia para combater a poluição por plásticos através da proibição do uso de alguns produtos de plástico descartável. Esperemos que o aumento do conhecimento acerca das consequências do uso excessivo de plástico seja um bom ponto de partida para o combate à poluição e que traga melhorias para a nossa saúde e a saúde do nosso planeta.

Margarida Quadros

(Quimio)terapeuticamente ultrapassado?

Nos dias de hoje, pressupomos que o desenvolvimento científico é a resposta e por vezes a causa de quase todos os problemas que enfrentamos. No entanto, se fizermos uma breve análise à suposição em questão, chegamos a uma conclusão extremamente óbvia e assustadoramente concisa, ou seja, como se pode calcular, por mais desenvolvido que o homem esteja, tanto a nível intelectual e até emocional, teremos sempre questões em aberto e problemas recorrentes.

Atualmente, o cancro é uma das principais causas de morte no mundo, mas apesar dos avanços tecnológicos a nível do diagnóstico, esta doença permanece ainda uma espécie de desafio e por vezes incógnita na área da saúde. Basicamente, a patologia consiste na proliferação anormal/descontrolada de células, que podem invadir ou danificar os tecidos e órgãos circundantes. Por mais simples que esta breve explicação nos possa parecer, estamos na presença de um tema bastante complexo, que suscita de uma observação muito mais aprofundada… O corpo humano é constituído por triliões de células que se multiplicam através de um processo chamado divisão celular e este por sua vez, tem vários mecanismos de controlo, de modo a evitar erros, sendo também responsável pela formação, crescimento e regeneração dos tecidos saudáveis do organismo, logo estamos perante um acontecimento imprescindível para a geração e perpetuação da vida. Entretanto, tal como uma máquina, o corpo humano até pode ter uma taxa de insucesso mínima, mas apresenta-a e este facto é suficiente para trazer danos irreversíveis e, em alguns casos, causar uma “avaria sistémica”.

Passando à frente, um dos métodos tradicionais mais usados no tratamento desta doença é a quimioterapia, que consiste na administração de fármacos quelantes que destroem células cancerígenas, visto que estas possuem um alto teor em Cu2+, daí o uso de ligandos seletivos para o mesmo (este fator, interfere com os processos de crescimento e divisão das células neoplásicas). Embora esta terapia seja bastante eficaz, infelizmente, acarreta consequências muito negativas para o nosso organismo, devido à falta de especificidade, pois afeta também as células saudáveis como por exemplo, células sanguíneas e células que revestem as mucosas da boca, intestino e folículos capilares, levando ao aparecimento de sintomas indesejáveis e incapacitantes (cansaço, náuseas, vómitos e diarreia). No entanto, tendo em conta todos os efeitos negativos que a quimioterapia pode causar, esta ainda é uma técnica bastante usada quando se trata de tumores malignos.

Outro recurso (provavelmente o mais interessante do ponto de vista clínico) que se tem vindo a desenvolver nos últimos anos é a imunoterapia, que apesar de ainda não ser recomendada para todos os tipos de cancro estimula o sistema imunitário, de modo a combater esta doença.  Ao longo da última década, tem-se assistido a um acréscimo de ensaios clínicos, quer em contexto paliativo, quer como adjuvante. Os resultados demonstraram o seu benefício no controlo de alguns tipos de cancro, como o melanoma, o cancro do pulmão, da bexiga, do rim e linfomas. Existem diferentes tipos de imunoterapia, que podem ser dadas em forma de medicamento ou através de terapia de células estaminais, ou seja, são extraídas células imunes do doente que são modificadas em laboratório para atacar as células neoplásicas, quando injetadas novamente no corpo do paciente. Os efeitos desencadeados pela imunoterapia são muito diferentes dos da quimioterapia, não sendo tão agressivos para o corpo humano, mas observam-se alguns sintomas de autoimunidade, devido à reação do sistema imunológico contra as células normais do organismo, sendo os mais frequentes a vermelhidão e secura da pele, diarreia, colite, hepatite e problemas na tiroide. Finalmente, por mais que a imunoterapia seja um método inovador e bastante eficaz, nalguns casos, apresentando sintomas muito ligeiros em comparação com a quimioterapia, este recurso ainda se encontra em desenvolvimento. No entanto, decerto que com mais estudos clínicos e avanços tecnológicos, teremos resultados mais promissores, que provavelmente nos farão abandonar as técnicas mais tradicionais.

Mara Baptista

Revolução no tratamento da Diabetes Tipo 2

Background

Sejam bem-vindos aos loucos anos 20 do século XXI! Estes são de facto tempos de grande incerteza e preocupação, à semelhança dos loucos anos 20 do século passado. O início do século passado ficou marcado pela Primeira Guerra Mundial (entre 1914-1918, aproximadamente 20 milhões de mortos) e pela pandemia de Gripe Espanhola (1918-1920, aproximadamente 50 milhões de mortos). A esperança média de vida para os homens era de aproximadamente 47 anos e de 50 anos para as mulheres, e para além de mortes acidentais como afogamentos, insolações, acidentes ferroviários, envenenamentos, ferimentos por armas de fogo, queimaduras, fraturas e luxações, as principais causas de morte eram:

  • Enterite e infeções gastrointestinais;
  • Tuberculose;
  • Pneumonia;
  • Doença Cardíaca;
  • Doença de Bright (Insuficiência Renal).

Atualmente, além da esperança média de vida ter subido consideravelmente para ambos os sexos, é justamente aceite por toda a sociedade que as principais causas de morte são:

  • Doença Cardíaca;
  • Cancro;
  • Doenças Respiratórias Crónicas;
  • Acidentes;
  • Acidentes Vasculares Cerebrais.

Sabe-se também que estilos de vida sedentários e dietas ricas em hidratos de carbono e gorduras saturadas são um dos principais fatores para o aparecimento de comorbidades que predispõem um paciente a desenvolver outras doenças. Um exemplo é a Diabetes Tipo 2, uma doença metabólica caracterizada pela resistência à insulina que geralmente evolui de obesidade e que pode levar a doenças cardiovasculares, insuficiência renal, cegueira e amputações. Muitos fatores da síndrome metabólica – um conjunto de 5 condições que podem causar doenças cardiovasculares, diabetes, acidentes vasculares cerebrais e outros problemas de saúde – afetam a função cerebral, como hiperglicemia crónica, complicações microvasculares, resistência à insulina, dislipidemia e hipertensão. Como se não bastasse, há também um crescente número de evidências epidemiológicas sugerindo que a resistência à insulina está associada a um risco aumentado de desenvolvimento de declínio cognitivo relacionado à idade, comprometimento cognitivo leve, demência vascular e doença de Alzheimer.

A diabetes pode ser prevenida, tratada e controlada através de uma alimentação saudável, atividade física regular e medicamentos para reduzir os níveis de glicose no sangue. Indivíduos com Diabetes Tipo 1 devem receber insulina por injeção ou bomba para sobreviverem. Em diabéticos do Tipo 2, cuidados alimentares, exercício físico regular e a administração de insulina também são usados para diminuir os níveis de glicose circulantes. Contudo, fármacos também são incluídos no tratamento do paciente de modo a garantir-se uma regulação da glicémia mais eficaz e completa. Seguem-se vários medicamentos usados no tratamento da Diabetes Tipo 2 e outros que prometem revolucionar as terapias já nesta década.

Metformina

A metformina (dimetildiguanida) é o tratamento de primeira linha padrão quando as mudanças no estilo de vida não atingem os objetivos glicémicos desejados. A metformina é um composto biguanida que reduz os níveis de hemoglobina glicada (HbA1c) ao inibir a gliconeogénese. Se a meta de HbA1c não for atingida após aproximadamente três meses de terapia com metformina, um dos cinco medicamentos de segunda linha pode ser adicionado ao regime de metformina: uma tiazolidinediona, uma sulfonilureia, um inibidor de dipeptidil peptidase 4 (DPP-4), um inibidor de cotransportador de sódio-glicose (SGLT-2) ou um agonista do recetor de peptídeo-1 semelhante a glucagão (GLP-1R). A insulina basal também pode ser adicionada à monoterapia com metformina.

Lixisenatida

Em julho de 2016, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou a lixisenatida (Adlyxin, Sanofi), um agonista de GLP-1R. A recomendação consiste numa injeção do fármaco uma vez ao dia na altura de uma das suas refeições, como um adjunto à dieta e exercícios para o tratamento de adultos com Diabetes Tipo 2. A aprovação foi baseada nos resultados do programa de ensaio clínico GetGoal e nos resultados do ensaio de Avaliação de Lixisenatida na Síndrome Coronariana Aguda (ELIXA). A ELIXA correspondeu à solicitação da FDA de dados que demonstram a segurança cardiovascular, que foi incluída numa carta de rejeição anterior. O programa GetGoal, que incluiu 13 estudos clínicos, avaliou a segurança e eficácia da lixisenatida em mais de 5 000 adultos com Diabetes Tipo 2. Todos os estudos GetGoal alcançaram com sucesso o objetivo primário de eficácia de reduções de HbA1c. Os efeitos secundários mais comuns incluíram náuseas, hipoglicemia e vómitos.

A lixisenatida está disponível em caneta pré-cheia descartável em dose única de 20 µg. Os pacientes também receberão uma caneta pré-cheia descartável em uma dose única de 10 µg que devem iniciar uma vez ao dia por 14 dias. No 15º dia, os pacientes aumentarão a dosagem para 20 µg uma vez ao dia.

Ertugliflozin

Ertugliflozin (Pfizer/Merck), um inibidor de SGLT-2 (de injeção oral, uma vez ao dia), demonstrou reduções significativas de HbA1c em dois estudos de fase 3 (VERTIS Mono e VERTIS Fatorial) em indivíduos com Diabetes Tipo 2. Os resultados do estudo mostraram reduções estatisticamente significativas em HbA1c para as duas dosagens de ertugliflozina testadas (5 mg por dia e 15 mg por dia). Como um inibidor do cotransportador 2 de glicose-sódio (SGLT-2), a ertugliflozina reduz os níveis de glicose no sangue, fazendo com que os rins removam a glicose do corpo pela urina. A ertugliflozina é rapidamente absorvida e eliminada principalmente por glucuronidação. Em maio de 2015, a FDA alertou que o tratamento com os inibidores SGLT-2 atualmente disponíveis, como canagliflozina (Invokana, Janssen), dapagliflozina (Farxiga, AstraZeneca) e empagliflozina (Jardiance, Boehringer Ingelheim), podem causar cetoacidose. Ertugliflozin foi aprovada pela FDA em dezembro de 2017.

FIAsp (ultra-rapid insulin aspart)

A Novo Nordisk desenvolveu o FIAsp, uma versão de ação mais rápida do NovoLog da empresa, para ajudar a proteger o NovoLog da erosão genérica em biossimilares. O FIAsp foi projetado para fornecer uma melhor correspondência com o perfil fisiológico da insulina prandial e produzir uma melhor resposta ao rápido aumento na necessidade de insulina após uma refeição em comparação com NovoLog. Em dezembro de 2015, a Novo Nordisk apresentou um novo pedido de medicamento para FIAsp à FDA para o tratamento de adultos com Diabetes Tipos 1 ou 2. O depósito foi baseado nos resultados dos ensaios de fase 3a ONSET 1 e ONSET 2, que envolveram aproximadamente 2100 adultos com Diabetes Tipos 1 ou 2, respetivamente. Ambos os estudos avaliaram a eficácia e a segurança do FIAsp na hora das refeições e após as refeições na redução dos níveis de HbA1c e no fornecimento de controlo de glicose no sangue pós-prandial. Em ambos os ensaios, o FIAsp foi comparado com NovoLog.

No estudo direcionado para a Diabetes Tipo 2 (ONSET 2), o FIAsp mostrou ser não inferior ao NovoRapid na redução da HbA1c. Um total de 881 pacientes com Diabetes Tipo 2 descontrolada com uma combinação de insulina basal e medicamentos antidiabéticos orais tiveram a sua terapia basal otimizada durante um período de execução de oito semanas. Os 689 pacientes que atingiram a meta pré-especificada de HbA1c de 7,0% a 9,5% durante a fase de execução foram aleatoriamente designados para a adição de FIAsp ou NovoRapid como insulina às refeições por 26 semanas. No final do estudo, a HbA1c média tinha melhorado de aproximadamente 7,9% para aproximadamente 6,6% em ambos os grupos FIAsp e NovoRapid. O FIAsp está disponível nos E.U.A. desde 2017 e foi aprovado pela FDA em outubro de 2019. A farmacêutica Novo Nordisk pretende disponibilizá-lo no dispositivo de entrega pré-preenchido FlexTouch e um frasco de 10 mL.

Rybelsus, Semaglutida Oral (NN9924, OG217SC)

O composto desenvolvido pela Novo Nordisk é uma formulação oral, administrada uma vez por dia, do agonista de GLP-1R. Este composto é nada mais nada menos que uma versão de um composto injetável chamado Semaglutida, que é administrado uma vez por semana. Esperava-se que o medicamento atingisse o status de blockbuster porque todos os outros agonistas de GLP-1R no mercado são produtos injetáveis. Foi aprovado pela FDA a 20 de setembro de 2019.

O composto OG217SC foi desenvolvido como uma formulação de comprimido, com um excipiente que aumenta a absorção, denominado N-(8-[2-hidroxibenzoil]amino)capril-tardio de sódio. Aquando do seu desenvolvimento, não existiam agonistas de GLP-1R orais comercializados.

Em agosto de 2015, a Novo Nordisk anunciou a decisão de iniciar um programa de ensaio clínico de fase 3ª com OG217SC. A decisão seguiu resultados encorajadores de um estudo de fase 2 de prova de conceito. O programa PIONEER consistiu em sete estudos envolvendo aproximadamente 8000 pacientes com Diabetes Tipo 2. Seis dos estudos avaliaram a segurança e eficácia de OG217SC, e um estudo examinou especificamente o perfil de segurança cardiovascular do medicamento.

Semaglutida

A Semaglutida (Novo Nordisk) também foi desenvolvida como uma injeção subcutânea uma vez por semana para pacientes com Diabetes Tipo 2. Vários medicamentos injetáveis ​​nesta classe já estão no mercado, incluindo Exenatida (Byetta) e Exenatida de liberação prolongada (Bydureon) da AstraZeneca, e Liraglutida (Victoza) da Novo Nordisk. Em junho de 2016, a Novo Nordisk relatou os resultados de dois estudos de fase 3ª da Semaglutida em adultos com Diabetes Tipo 2. No estudo SUSTAIN 2, a Semaglutida (0,5 mg e 1,0 mg) administrada uma vez por semana melhorou significativamente o controle glicémico em comparação com a sitagliptina (100 mg). No estudo SUSTAIN 3, a semaglutida (1,0 mg) administrada uma vez por semana melhorou significativamente o controle glicémico em comparação com a exenatida de liberação prolongada (2,0 mg).

Aprovado em setembro de 2020, a Semaglutida é o quarto agonista do GLP-1R no mercado administrado uma vez por semana.

Take-Home Message O mercado atual de Diabetes Tipo 2 está repleto de medicamentos de marca, genéricos e biossimilares. Todos esses agentes, entretanto, tendem a perder eficácia após três ou quatro anos de tratamento. Espera-se que estes medicamentos recentemente aprovados possam revolucionar o tratamento de Diabetes Tipo 2, se puderem efetivamente demonstrar a capacidade de fornecer um controle glicémico mais duradouro em comparação com os tratamentos tradicionais.

João Vieira

Mars 2020

Depois de Curiosity em 2012, a NASA voltou a colocar este ano um rover na superfície de Marte. Perseverance, assim apelidado depois de um concurso nacional para crianças em idade escolar (tal como os seus antecessores), descolou da estação da força aérea de Cabo Canaveral em julho de 2020 e terá aterrado a 18 de fevereiro de 2021 na cratera de Jezero, que há milhões de anos foi o delta de um rio. Esta missão visa continuar a caracterização do ambiente do planeta vermelho, bem como contribuir para as questões de astrobiologia e preparar a exploração humana em Marte.

   O rover terá como missão a identificação de ambientes antigos que possam ter suportado presença de microrganismos e a procura de sinais da existência deste tipo de vida, recorrendo a uma broca capaz de recolher amostras do solo marciano e armazenando-as em tubos para que possam ser transportadas para Terra numa futura missão. Para além disto, o robot está equipado com tecnologia capaz de transformar o dióxido de carbono presente na atmosfera marciana em oxigénio, que poderá ser de importância vital para futuras explorações ao planeta. A missão inclui ainda tecnologias como sistemas de navegação e aterragem que permitem ao rover identificar terrenos perigosos e desviar a sua trajetória, sensores para a medição de fatores caracterizantes do ambiente do planeta como a temperatura, velocidade e direção do vento, humidade e dimensão de poeira, um helicóptero (Ingenuity), um espetrómetro de fluorescência raio-x de elevada resolução para a determinação da composição elementar da superfície marciana, entre outras. Para além disto, o robot incorpora ainda uma câmara e microfone, com os quais já foram obtidas imagens, vídeos e áudios que se encontram disponíveis no site da agência aeroespacial norte-americana para a comunidade geral, permitindo viagens interplanetárias virtuais num ano passado maioritariamente em confinamento.

Diana Santiago

As vacinas contra o coronavírus “trocadas por miúdos”

A vacinação foi e continua a ser um dos maiores avanços do nosso mundo. Com as vacinas, pudemos deixar de combater doenças potencialmente mortais antes sequer delas aparecerem, jogando por antecipação. Devido às vacinas, fomos, enquanto sociedade, capazes de erradicar verdadeiras pragas, como a varíola, e de limitar outras, como o tétano ou o sarampo.

A história do desenvolvimento de vacinas já conta com muitos anos. Contudo, face à dificuldade que é criar uma vacina eficaz, só por duas vezes a ciência desenvolveu vacinas em menos de uma década: a da papeira demorou 4 anos, e a do sarampo demorou 9. Geralmente, este processo demora décadas e casos há em que mesmo ao fim de mais de 100 anos de investigação ainda não existe uma vacina universal verdadeiramente eficaz (como acontece com a malária). Foi assim deveras surpreendente que a comunidade científica, em menos de 1 ano, tenha conseguido desenvolver tantas e tão variadas vacinas para combater a covid-19.

Mas como explicar que o processo tenha sido tão célere desta vez? Uma das causas é o facto do mundo se ter unido em prol deste objetivo. Gastou-se dinheiro em barda e mobilizou-se gente como nunca. Outra das causas foi o facto de se terem começado testes em humanos muito mais cedo e das entidades reguladoras terem acompanhado este processo muito mais de perto, o que permitiu perder muito menos tempo nas questões burocráticas (que, atenção, são essenciais para garantir a qualidade, eficácia e segurança das vacinas). Mas a causa principal acaba por ser um conjunto de descobertas que permitem revolucionar este processo. Nos próximos parágrafos tentarei explicar sucintamente a biologia por detrás das mesmas.

Sistema Imunitário

Antes de explicar o funcionamento das vacinas, é necessário explicar como funciona o sistema imunitário (SI). O SI humano é definido como o conjunto de estruturas, barreiras, e processos biológicos que protegem o ser humano contra os ataques a que está sujeito. Os seus principais atores (embora não os únicos) são os leucócitos, vulgarmente chamados de glóbulos brancos, que são um autêntico exército biológico que anda em constante movimento ao longo do nosso corpo atento a ameaças, para poder neutralizá-las o mais rapidamente possível.

Tal como num exército há vários tipos de militares, também nem todos os leucócitos são iguais, sendo que cada tipo tem uma função especializada. As funções de ataque mais direto estão a cargo, entre outros, dos neutrófilos, macrófagos e linfócitos T citotóxicos. Algumas destas células são menos seletivas que outras (por exemplo, os neutrófilos são vulgares soldados rasos, enquanto os macrófagos são uma espécie de força especial que só atua quando é chamada à ação e só contra determinados alvos), mas, no fundo, o que elas fazem é destruir tudo o que seja considerado perigoso para o nosso organismo – os antigénios – como são bactérias, células infetadas por vírus, células a funcionar mal (por exemplo células cancerígenas), et cetera.

Depois de eliminar ameaças, algumas células (p. ex. os macrófagos) partem os antigénios em pedaços e apresentam-nos às células T auxiliares, que são os generais deste exército e coordenam uma resposta mais complexa. Em primeiro lugar, podem recrutar mais macrófagos. Em segundo lugar, podem mostrar o pedaço que receberam aos linfócitos B, levando-os a fazer duas coisas: 1) a produzirem anticorpos específicos para esse pedaço do antigénio, que são libertados depois no sangue. Se algum dia os anticorpos voltarem a contactar com o antigénio, este fica marcado e é depois descoberto rapidamente pelo nosso exército, não tendo assim tempo para causar doença; 2) ou a transformarem-se em linfócitos B de memória, que basicamente estarão sempre de sentinela para produzirem anticorpos rapidamente quando voltarem a ver o antigénio (ou, para ser mais correto, quando virem o pedaço que já conhecem). Por fim, as células T auxiliares podem também se transformar em células T de memória, que funcionarão também como sentinelas.

Importa dizer que isto é, claro, uma síntese muito curta e que a resposta imunológica é muito mais complexa que isto, havendo muitos mais players envolvidos na mesma.

O DNA e o processo de produção de proteínas

Outro conceito importante para perceber como funcionam as vacinas contra a Covid-19 é o de como são produzidas as proteínas nas nossas células.

Fazendo uma analogia imperfeita, as nossas células são como pequenas fábricas em que se produzem peças de todo o tipo, as proteínas. No núcleo das células (o escritório), está guardado o manual de instruções para produzir todas as proteínas humanas. Esse manual é o código genético: o DNA. Ora, existem milhares de proteínas humanas, pelo que se poderá deduzir facilmente que tal livro se trata de um verdadeiro calhamaço!

Suponhamos agora que, num determinado momento, é preciso produzir um parafuso. Não faria sentido o engenheiro ir ao escritório, pegar no DNA inteiro e mostrá-lo ao operário (o ribossoma), que obviamente ficaria perdido com tanta informação desnecessária para produzir um só parafuso. Assim, aquilo que o engenheiro faz é abrir o DNA na página certa e copiar as instruções para produzir esse parafuso para um papel. Essa cópia é o RNA mensageiro. Depois, o engenheiro entrega o papel ao operário, que olhará para lá e produzirá o parafuso desejado rapidamente. Com o parafuso feito, o papel deixa de ser necessário, e por isso é deitado ao lixo.

A infeção viral

Por fim, é preciso perceber como é que as nossas células são infetadas pelos vírus.

O primeiro passo na infeção viral é a infeção per se, isto é, a entrada do vírus nas células. Este mecanismo varia de vírus para vírus. No caso do coronavírus, ele aproveita um recetor que existe à superfície das nossas células e usa-o como porta. Como é que ele faz isso? Fá-lo porque consegue usar os seus espinhos como puxador.

Enfim dentro da célula, os vírus comportam-se como terroristas dentro da fábrica, fazendo dos operários reféns e obrigando-os a produzir o que eles quiserem. Em concreto, os vírus obrigam os operários a produzir as suas próprias proteínas, ou seja, a produzir peças necessárias para que se possam “montar” mais unidades do vírus.

Por fim, quando todas as peças para montar um vírus inteiro estiverem prontas, um vírus novo é “montado” e é exportado para o sangue para ir infetar mais células.

As vacinas old-school e as novas formas de fazer vacinas

Tradicionalmente, a forma de vacinar pessoas mais comum é através da introdução do próprio antigénio, obviamente tratado para que não seja perigoso. Isso pode ser feito de diversas maneiras. Só para dar um exemplo, no caso da vacina da gripe, injeta-se as pessoas com o próprio vírus só que previamente destruído. Quando as células do sistema imunitário encontram estes “cadáveres” no corpo, encaram-nos com seriedade e desenvolvem uma resposta imunitária completa como se estivessem perante algo perigoso. Sendo uma resposta completa, isso envolve a formação de anticorpos e de células de memória. Assim, no futuro, se as células de memória contactarem com um vírus vivo, rapidamente o atacam porque já sabem os seus pontos fracos.

O problema das formas tradicionais de fazer vacinas é que são muito morosas e difíceis. Encontrar formas de destruir ou inativar um antigénio sem o desfigurar completamente (pois assim ele ficaria demasiado diferente do original e depois as células do SI não o reconheceriam) é um desafio extremamente complexo, que redunda quase sempre em vacinas pouco eficazes e, portanto, inúteis. Felizmente para nós, nos últimos anos tem havido investigação para desenvolver vacinas de outras formas que permitem, acima de tudo, acelerar todo o processo.

Uma dessas estratégias faz uso do RNA mensageiro, o tal “papel”. Nas vacinas deste tipo, é então injetado nos pacientes um papel com as instruções para produzir proteínas inofensivas do antigénio, que é depois transportada no sangue até às nossas células. Lá, os operários olharão para o papel e, como não são pagos para pensar, simplesmente produzem o que lá está escrito. Quando tal coisa é produzida, as células do SI assustam-se e tratam essas proteínas como uma ameaça, produzindo também anticorpos e células de memória. Há pelo menos três vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia: a da Pfizer, a da Moderna, e a da CureVac. Nelas, as instruções que vão no papel são para produzir o espinho do coronavírus, que, fora do vírus, sozinho, não faz nada (relembro: é só o “puxador da porta”). Assim, mais tarde, quando pessoas já vacinadas são infetadas com o coronavírus, as células de memória podem nunca ter visto o vírus inteiro antes, mas como já conhecem o espinho, atacam-no logo porque se lembram dele como algo perigoso, sem dar tempo ao vírus de se reproduzir e causar a doença.

A outra nova estratégia para produzir vacinas faz uso de outro vírus, o adenovírus. Basicamente, lembrando-se que os vírus quando infetam as células fazem dos operários seus prisioneiros, os cientistas pegaram no adenovírus, tiraram-lhe o que consideravam inútil e puseram dentro instruções para produzir coisas que lhes interessam. No caso das vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia, os cientistas puseram nesses vírus instruções para produzir o espinho. Assim, nas pessoas vacinadas com uma vacina deste tipo, é injetado este vírus modificado e depois é só esperar que ele comece a infetar células. Quando tal acontece, os operários, reféns, produzem os espinhos do coronavírus e a partir daí o processo é igual ao das vacinas de RNA mensageiro. Entre as vacinas contra o coronavírus que usam esta tecnologia estão a da AstraZeneca, a da Johnson & Johnson, e a vacina russa Sputnik V.

Ou seja, muito resumidamente, a grande diferença entre as vacinas disponíveis contra o coronavírus é que num caso os operários produzem espinhos sem o saber, e no outro produzem-nos porque estão reféns de outro vírus.

Como dá para perceber, com estas novas estratégias, a única coisa de que precisamos para produzir vacinas é o “manual de instruções” do antigénio. Assim que soubermos isso, é uma questão de meses até se montar uma vacina eficaz. No caso do coronavírus, fruto do trabalho incessante da comunidade científica, a sequenciação do genoma do vírus aconteceu em poucas semanas, pelo que rapidamente foi possível começar a trabalhar nas soluções. A utilização em larga escala de novas tecnologias para criar vacinas é algo que já vinha sendo preparado há anos, mas com a urgência da situação atual, a comunidade científica arrepiou caminho e apresentou-nos soluções verdadeiramente revolucionárias. O combate contra a covid-19 é a primeira aplicação das mesmas, mas certamente não será a última, pelo que podemos ter esperança no desaparecimento de várias doenças a médio-prazo com base em tudo aquilo que aprendemos neste último ano. Assim, num tempo com poucos motivos para celebrar, celebremos o progresso!

Cláudio Costa

factos suecos

A Suécia é considerada um dos países mais desenvolvidos do mundo e a sua fama remonta até aos tempos dos salteadores Vikings, que invadiram, exploraram e colonizaram grandes áreas na Europa após o auge do Império Romano. A sua sociedade é muitas vezes referida como um modelo exemplar, mas sobrevaloriza a noção de espaço pessoal, dificultando a interação interpessoal. Para além do estereótipo da sociedade nórdica, existem bastantes curiosidades acerca dos Suecos que são desconhecidas pela maioria das pessoas e que surpreenderão qualquer forasteiro. Abaixo, serão descritos 4 factos sobre a sociedade e cultura sueca.

  1. Lördagsgodis – Sábado de Doces

Os Suecos, e as demais nacionalidades nórdicas, adoram comer doces. Com índices de educação, longevidade e consciência ambiental de causar inveja, este hábito não parece ser o mais saudável de todos. De facto, a história por detrás disto é um pouco negra. Nos anos 40 do século passado, as empresas de doces queriam demonstrar ao consumidor que a ingestão excessiva de doces não levava ao surgimento de cáries. Então, com o apoio do Governo Sueco, levaram a cabo uma experiência eticamente duvidosa até aos dias de hoje: forçaram doentes institucionalizados com distúrbios mentais a ingerirem quantidades enormes de doces. Determinou-se que a ingestão excessiva de doces causava o apodrecimento dos dentes. Após este estudo, foi declarado obrigatório que todas as pastas de dentes necessitavam de ter flúor na sua composição e uma nova tendência cultural emergiu: as crianças só podem ingerir doces aos sábados e é tradição irem com os pais escolherem as suas guloseimas favoritas, desde que estas não ultrapassem a quantia de 20 Coroas Suecas (2€, aproximadamente).

  1. Fika – O Coffee Break Sueco

Para os Suecos “fika” não é um momento revolucionário, mas sim uma atividade banal do seu dia a dia, pois consideram que é muito importante realizar uma pausa diariamente para refletir e descontrair. Esse abrandamento pode ser feito individualmente, mas normalmente preferem fazê-lo em grupo, quer com amigos ou colegas de trabalho. Tipicamente, ingerem uma caneca de café ou chá acompanhada com algum tipo de produto de pastelaria. Não existem grandes formalidades à volta do assunto e toda a gente é bem-vinda!

  1. A estranha história da vodka na Suécia

Para além de doces e de café, os Suecos adoram vodka! Contudo, a história da bebida espirituosa neste país não é absolutamente linear. A sua destilação, à base de uvas e grãos, iniciou-se no século XIV com o propósito do fabrico de medicamentos. No século XVI, as bebidas espirituosas tornaram-se bebidas de luxo e só no século XVII é que a vodka se tornou numa bebida recreacional acessível a todas as classes sociais. O seu aumento de popularidade levou à criação do monopólio de produção de bebidas espirituosas pelo estado em 1755 e a vodka passou a ser obtida através da destilação da batata na década de 1790 pois na altura este tubérculo era mais acessível que o trigo. A Sociedade de Temperança da Suécia foi fundada em 1837 e em 1860, a destilação doméstica era proibida no país, devido ao seu consumo excessivo. A sua venda pública foi bastante limitada e autorizada a apenas alguns estabelecimentos em cada cidade, que só a serviam durante as refeições e encerravam cedo à noite. Os lucros resultantes do consumo de vodka eram reinvestidos na sociedade e a medida foi considerada eficaz. As companhias locais de cada cidade fundiram-se no monopólio nacional de venda de bebidas alcoólicas (Systembolaget), que mantiveram o racionamento da venda de vodka até aos anos 50 do século passado. Com a entrada do país na UE em 1995, o monopólio estadual de produção foi terminado, mas ainda mantêm os direitos de comercialização até aos dias de hoje.

  1. Midsummer – Solstício de Verão

Além do Natal, o Solstício de Verão é o feriado mais importante do calendário sueco. Para alguns, o solstício de verão é o mais importante. Originalmente celebrado a 24 de junho, atualmente o Midsummer é celebrado entre os dias 20-25 de junho por toda a gente na Suécia. É um evento ao ar livre no qual as pessoas se juntam para um almoço interminável à base de arenque em conserva servido com deliciosas batatas novas, cebolinha e natas. Independente do género, toda a gente usa uma coroa de flores à cabeça, bebem os seus schnapps favoritos e cantam e dançam à volta de um poste também decorado com flores. O propósito desta festividade é festejar-se a fecundidade humana, no qual o poste simboliza o órgão reprodutor masculino.

João Vieira