As ciências do ódio – Superior de Angela Saini

O conceito de raça como o conhecemos hoje tem origem na época colonial e pela primeira vez, pessoas com a pele clara encontraram pessoas com a pele negra a viverem em condições distintas, com práticas culturais diferentes. Iniciou-se assim o processo de definição de raça, de pôr em questão se estas pessoas eram ou não humanos, isto é, de desumanizar uma parte da humanidade com base no tom da pele. Após algum tempo, a prática do rapto e transporte transatlântico destes povos diferentes começou, iniciada por Portugal. Eventualmente, a partir daqui chegámos à grande empresa da escravatura, cujas vozes ainda ecoam nos dias de hoje, materializando-se na discriminação racial e estrutural – tipicamente denominada de racismo – com imensas repercussões com as quais Portugal se recusa a lidar, apesar das recomendações feitas por órgãos europeus e pelos próprios portugueses e imigrantes que sofrem as consequências do racismo. Contudo, esta crueldade contínua não foi pura e simplesmente um ato da vontade irracional do Homem em se ver como um ser superior, foi também alvo de várias experiências científicas, rebaixando a ciência a um terreno sujo e lamacento, enrolada nos emaranhos do viés ideológico. Nessa altura, a ciência foi usada para justificar práticas racistas e isso faz parte do legado da história da ciência. Contudo, há espectros que nos assombrarão perpetuamente enquanto houver mentes incapazes de lidar com os legados problemáticos do passado – o racismo é um deles, e as “ciências raciais” acompanham-no.

É sobre esta presença contínua das “ciências raciais” (para que não restem dúvidas as aspas pretendem aqui reforçar o carácter não científico desta “ciência”) que Angela Saini escreve em Superior, um livro que desconstrói toda a mitologia do racialismo – a pseudociência que rabisca justificações (absurdas) para motivar a ideia de que a raça branca é superior. Por outras palavras, “Superior” é um fenomenal epitáfio do racismo científico – só falta que o matem de vez.

Angela Saini é uma mulher britânica de ascendência indiana formada em Engenharia pela Universidade de  Oxford e em Ciência e Segurança pelo King’s College London. Começou a sua carreira enquanto jornalista de investigação independente em 2008 e publicou em 2011 o seu primeiro livro, Geek Nation, sobre as maneiras como a ciência indiana está a ser usada não só no país, mas também no mundo. Em 2017 publica Inferior, que pretende chamar a atenção às práticas pseudocientíficas que perpetuaram durante séculos: a ideia de que os homens são inferiores às mulheres. É um lema semelhante – como a ciência e o discurso que a rodeia foram usados para motivar a discriminação de milhares de milhões de seres humanos – que motiva Superior, considerado um dos melhores de 2019 para a revista científica Nature.

Superior marca-se como um livro que devia ser desnecessário, como um livro que custa a ler não só por nos colocar de frente com o passado complicado da ciência e com o seu presente deturpado por esses legados, mas também por nos obrigar a ver como a ideologia pode levar à aceitação de práticas pseudocientíficas como verdadeira ciência. Afinal de contas, como Saini nos conta, foi a ciência que perpetuou durante décadas a ideia de que raças diferentes eram outras espécies. Foi a ciência que perpetuou as teorias da eugenia que eventualmente levaram ao Shoah (mais comum e erradamente conhecido como Holocausto). Foi a ciência que motivou a esterilização forçada de dezenas de milhares de mulheres de cor nos Estados Unidos da América, uma prática que perdurou até aos anos 80.

Isto aconteceu ao longo de anos e obviamente houve quem contestasse. Houve quem protestasse, houve quem morresse para ir contra esta discriminação supostamente apoiada pela ciência. No entanto a mudança demorou a chegar. Porquê? Saini traz-nos para um dos pontos fulcrais do seu livro – que a ciência é livre de viés ideológico. Números são números, dados são dados, mas aquilo que escolhemos investigar e as questões científicas que escolhemos explorar são determinadas em grande parte por aquilo que nós próprios consideramos importante Não há maneira de isolar essa preferência das nossas emoções e sentimentos relativamente às diferentes áreas da ciência. Contudo, Superior não é um mero ensaio sobre ciência: Angela Saini consulta uma variedade enorme de peritos – fala com pessoas financiadas por um dos “financiadores” modernos das “ciências raciais”, o PioneerFund, que nos seus primórdios suportou a distribuição de filmes de propaganda nazi nos E.U.A. e atualmente paga jornais científicos da Elsevier que publicam investigação racista, com investigadores como Cavalli e Sforza, que ingenuamente ignoram os aspetos sociais e políticas na investigação da genética humana, com historiadores, arqueólogos, cientistas – sem abandonar o olhar crítico e científico que a motiva. Saini, através deste corpo de conhecimento que é fruto de um trabalho de investigação considerável, mapeia o território por onde a pseudociência racista – as “ciências raciais” e o racialismo – se movimenta denunciando os alicerces fracos ou pura e simplesmente inexistentes que a sustenta.

José Guilherme de Almeida

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