Ética limitante

O ser humano intelectualmente desenvolvido sempre se pautou por questões éticas, obviamente adaptáveis aos tempos e à cultura corrente. De acordo com a Wikipedia, conceptualmente, Ethos (em grego antigo: “hábito; costume”) é o conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o caráter ou a identidade de uma coletividade. Por outras palavras, creio que não estou errado ao afirmar que a Ética, numa comunidade, é um conjunto de regras sociais pelas quais ela se rege. Como se aplica a qualquer outra comunidade, isto é verdade também para a comunidade científica. Em bom rigor, Ética e Ciência, qualquer que seja o ramo, são duas disciplinas indissociáveis. No entanto, a pergunta para 1 milhão de dólares é: como traçar a linha entre o que é aceitável no processo de obtenção de conhecimento e o que não é, à luz das questões éticas?

Sou da opinião que o conhecimento é a causa mais nobre do mundo. Diz o povo que a ignorância é uma bênção, mas estou em profundo desacordo. Saber é sempre melhor que não saber. Se não fosse a Ciência e a sua incessante procura pelo conhecimento, a vida humana seria algo tão diferente daquilo que atualmente é que imaginar se torna um exercício inglório. Os problemas surgem quando a procura de conhecimento choca de frente com a Ética. Ora, o tema de capa desta edição da RNA Mensageiro surgiu na sequência de um desses choques, o famoso He Jiankui affair.

Jiankui é um biofísico chinês cuja Alma Materera, à data, a Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzhen. Muito sucintamente, através de uma técnica para edição de genética conhecida como CRISPR/Cas9, Jiankui introduziu em embriões fertilizados em laboratório uma mutação num gene, mutação essa que se crê que confere resistência inata ao vírus HIV, seguindo-se depois a gestação normal destes embriões. Importa dizer que os embriões eram de casais em que o homem era seropositivo e a mulher não, isto é, em que havia um risco grande da descendência do casal ser seropositiva. Obviamente, uma experiência deste género conduzida em humanos gerou amplas críticas na comunidade científica, sendo Jiankui apelidado de “Frankenstein chinês”. Além disso, estes atos valeram ainda o seu despedimento, uma pena de prisão de 3 anos, e uma multa de 3 milhões de Yuan (cerca de 400 mil euros). Mas analisemos este caso por partes.

À luz da legislação, não restam dúvidas. Estas atividades experimentais foram feitas de forma ilegal, envolvendo documentos forjados e um secretismo por razões óbvias. À luz das normas éticas em vigor, dúvidas também não as há. Efetuar experiências em humanos antes de se ter total certeza de que há efetivamente benefícios e de que os efeitos adversos roçam dentro dos possíveis o inócuo, como Jiankui fez, é indubitavelmente condenável, porque, de certa forma, é um rebaixar do valor da vida humana.

Por outro lado, à luz daquilo que é conhecimento público, avaliando as verdadeiras intenções do cientista, alguém é capaz de afirmar que este tinha más intenções? É que a técnica de CRISPR/Cas9 é já algo que vai começando a ser amplamente usado na comunidade científica (eu sou um dos muitos usuários), sendo portanto algo minimamente seguro unicamente no que à parte teórica diz respeito, e o que ele fez, por muito pouco ortodoxo que seja, foi oferecer uma solução para casais que se calhar pouca esperança tinham. Assim, urge perguntar: e se esta experiência for um sucesso? O resultado final serão pais super felizes, crianças que nascem sem um rótulo discriminatório enorme (na China, há um estigma social muito grande contra pessoas com HIV) e um avanço científico imensurável na área da biomedicina. Ou seja, se esta experiência for um sucesso, estamos perante um caso claríssimo em que a Ética, mais do que um guia, era um obstáculo ao desenvolvimento.

A minha opinião é de que estamos perante alguém que, vendo os factos de uma perspetiva diferente daquela que é amplamente aceite, agiu de acordo com as suas próprias noções éticas. É condenável? De acordo com as conceções vigentes, sem dúvida que é. De acordo com a ética pela qual Jiankui He se rege, parece que não. Na realidade, quem é que está certo, Jiankui ou a sociedade? Bem, isso fica para cada um refletir.

Em jeito de síntese, parece-me óbvio que a Ética será sempre um obstáculo para a Ciência e para o conhecimento no geral. E por muito polémica que possa ser a utilização da palavra “sempre”, relembro que a partir do momento que a sociedade no geral achar que algo é aceitável, mesmo que antes não o fosse, essa passa a ser a norma social vigente e, portanto, esse algo é algo ético. Dito isto, termino dizendo que a questão correta não é se a ética é um obstáculo para o conhecimento e a ciência, porque essa tem resposta fácil. A pergunta que se deve colocar é: quão limitante é a Ética, isto é, o que é que a sociedade perde por ser uma sociedade ética? Talvez os pros até sejam mais fortes que os cons. Contudo, eu diria que ao invés de se estabelecer julgamentos imediatos mediante a Ética em vigor, talvez fosse muito mais produtivo para o conhecimento e por inerência para a comunidade humana fazer esta pergunta sempre que algo eticamente questionável aparece. Bem sei que isto é demasiado teórico para sequer ser translacional, mas fica a dica para a sociedade.

Cláudio Costa

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